29 de março de 2009

CONTINUAÇÃO SOBRE A FREGUESIA

A freguesia de São Caetano, tem a maior e melhor baía da ilha. Era ali que, as traineiras vinham apanhar o isco (chicharrinhos) para a pesca do atum, especialmente quando o não encontravam noutros lados. Em noites calmas de verão, por vezes eram tantas as luzes, que nos pareciam uma Vila. Meus Pais, pessoas humildes, em tempos de pouca fartura, haviam iniciado a sua vida a dois a partir do nada, casando-se no ano de 1933. O padrinho do casamento do meu pai, o Tio António Medeiros, irmão da minha Avó Paterna, oferecera-lhe um queijo fresco de leite de cabra e dissera-lhe que poderia ficar também com respectivo pratinho. Ainda antes de casar, haviam feito alguns melhoramentos na pobre casa da Rita do Ferreiro como eles lhe chamavam, ali na Canada do Frade para onde foram habitar, que se encontrava tão-somente com as paredes no ar, com o tecto caído, sem porta nem janela, etc. etc. Cerca de 2 anos depois, compraram na mesma rua outra casa, também esta precisando muito de obras de restauro e reparação, mas desta vez já era sua. Meu Pai principiou a sua vida trabalhando de sol a sol, dia a dia para este e para aquele, pegando em cargas muito acima das suas possibilidades, puxando pela enxada até o corpo aguentar; Caso contrário ninguém lhe daria um dia de trabalho. Em todos os tempos, houve pessoas com mais ou menos escrúpulos, e nessa época já não faltava quem se aproveitasse da pior forma, do suor dos mais necessitados; isto no tempo em que o salário diário de um trabalhador agrícola era de (uma serrilha) vinte centavos, que para melhor compreensão, comprava 4 (quatro) pães de trigo de 350 gramas, contava eles. Nos primeiros tempos, como contava a minha Mãe, além do seu trabalho doméstico em casa, preparava a comida que ia levar ao meu pai às terras, e por lá ficava normalmente até perto da hora do jantar a ajudá-lo naquilo que podia. Mais tarde, e à medida que os filhos foram chegando, o tempo foi faltando.
Mesmo assim, e apesar das poucas mudas de roupa que existiam, por vezes eram lavadas ao fim da semana de trabalho, normalmente no fim do Sábado, para voltarem a ser vestidas na segunda-feira seguinte demanhã. Muitas vezes, designadamente durante o Inverno quando chovia abundantemente, eram lavadas e enxutas sobre uns galheiros, (lenha) ao lado do caldeirão de ferro fundido sobre uma grelha de três pés também de ferro, ao calor do lume da lareira. Parece que estou vendo e ouvindo a minha Mãe a lavar roupa no poço junto ao tanque (à cisterna), lavando e cantando:

Ó mãe que horas passavas
Na aurora da minha vida
Junto ao berço que me embalavas
Meigamente me beijavas
Nessa infância tão querida

Naquele tempo não conhecia
Esses pecados sacrílegos
Ao lembrar-me quando eu ia
A saltar com alegria
Aos ninhos dos pintassílgo

Via o mundo a sorrir
Nesse meu sonho de amores
Sorria lindo o por vir
E agora estou a sentir
Tanto martírio e dores…

Não me lembro de ter havido nenhuma segunda-feira que alguém da família não tenha saído de casa com roupa lavada e passada a ferro aquecido com as brasas da lareira.
Meu pai, era uma pessoa exigente, honesto e trabalhador do qual me lembro todos os dias, dizia ter comido do “pão que o Diabo amassou com o Cu”, o que não queria para os filhos, mesmo que muito lhe viesse a custar. Fez das tripas coração, dando de si, o que podia e o que não podia, para que pudesse, como só pedia a Deus, adquirir terras onde cultivar o necessário para o sustento e fartura dos filhos. Nos seus princípios, era aos Domingos, dias santos e de chuva, que aproveitava para rasgar as suas vinhas – rasgar vinhas, era, desbravar terrenos incultos, abandonados, arrancar faias e demais lenhas – onde pudesse plantar as primeiras parreiras, e num futuro próximo começar a ter uvas para a família comer e fazer vinho que pudesse vender para a ajuda do orçamento familiar. Principiou pela “Canada dos Coxos”, terreno que embora novamente inculto, ainda continua pertencendo à família. Contava a minha mãe que quando lhe ia levar a comida, dava-lhe vontade de chorar ao encontrá-lo por vezes todo molhado a trabalhar com uma saca de serapilheira já toda molhada por cima dos ombros, pois nem a chuva o fazia parar.
A vinha do Jacinto, era a nossa vinha preferida. Ali, comia-mos os primeiros bagos de uva nos primeiros dias de Agosto. Nesta vinha, além da vinha, havia também uma ameixieira que dava muitas e saborosas ameixas pretas e miúdas e várias figueiras de bico de mel. Ficava relativamente perto de casa, à beira da estrada regional, e, era um lugar muito vistoso, onde hoje tenho uma pequena vivenda, que eu, os meus filhos e netos adoramos passar uns dias, especialmente no verão. Herdou meu pai metade desta vinha por morte do meu avô paterno, e comprou a outra metade ao irmão Sebastião, meu tio e padrinho.

Os Adágios Populares

Naquele tempo ouviam-se e respeitavam-se muito os provérbios ou adágios populares. Muitas pessoas quase sempre quando falavam acerca das mais variadas coisas, normalmente citavam um provérbio. Era a cultura do povo. Meu Pai, era daqueles que, entre outros, pensava e dizia-nos: É preciso ter o barco sempre aproado à vaga de mar” caso contrário, corre-se o risco de meter água ou revirar. Contava também uma história em versos, que eu achava muita graça:

“Casa, quanta mores
Vinha, quanta podes
Lavrança ...
Quanta a vista alcança”.

Lá vai a Rita
Mai-lo Joaquim
Com saia de chita
Calças de cotim.

Têm campos, herdades
Têm juntas de bois
Trabalham as terras
Sozinhos os dois. Etc.
No tempo, era nos poços de maré (água salobra do mar) que a maioria das pessoas se abastecia de água para lavar roupas, e até para cozinhar. Água potável, no verão era escassa, pouca havia. Só aquele felizardo que tivesse uma boa cisterna, evitava ir parar ao poço de maré.
A minha Mãe, para mim, modelo de mãe, graças ao marido que teve, nunca lá precisou de ir. Sempre teve toda a que precisou na sua cisterna.

A cisterna de meus pais

Como atrás acabei de referir, cada qual teria que ter a sua cisterna, para aparar a água das chuvas. Meu pai, construiu uma toda em pedra; e cada uma... que, sozinho lá ia rolando conforme podia, e tão bem feita na qual nunca faltava água em pleno verão. Com a água dele matou a sede, não só a muitos dos vizinhos, mas também a muita gente da freguesia que por ali passavam e enchiam as suas bilhas de barro ou latas para levarem para as terras das redondezas.
Era da terra e do mar quer se vivia. Não haviam super nem hipermercados. Da mercearia vinha normalmente para casa duma família com saúde, o petróleo para a iluminação, cuja candeia ou candeeiro só se acendia quando já nada se via, o sabão azul, o cotim para as calças, a chita para os vestidos e aventais das mulheres, o sal para a cozinha e salga do porco e do peixe para o Inverno e pouco mais. O açúcar e o pão de trigo, só em casos de doença. Falei de petróleo, mas esse já representava o progresso. Sou do tempo em que a iluminação se fazia com o azeite do toucinho das baleias derretido e também do fígado dos tubarões (albafares), e mesmo assim não era para todos. Eram de facto tempos muito difíceis.
A Matança do Porco

No início de cada ano, normalmente em Janeiro e Fevereiro, quase todas as famílias matavam o seu porco, que fazia a fartura da casa e a maior festa anual das famílias.
Um mês antes da matança, as pessoas iam às pasgtagens altas cortar as vassouras – a urze – que depois de bem secas, serviam para chamuscar o porco, isto é: queimar-lhe o cabelo para a posterior limpeza da pele. Três dias antes do dia da matança, arrancavam-se as cebolas de rama, limpavam-se, lavavam-se e punham-se a secar, geralmente sobre as vassouras que já estavam na loja à abrigada, pois no dia da matança podia amanhecer a chover. No dia seguinte, véspera da matança, as mulheres picavam e amassavam as cebolas, a salsa e os orégãos, outras coziam o bolo no forno, o pão de duas farinhas, cosiam-se os inhames, assavam-se batatas-doces, preparava-se o bacalhau para o almoço do dia seguinte, caso não se tivesse conseguido peixe fresco, outras preparavam as salgadeiras e panelas de barro para salgar o conduto e colocar a banha, etc. etc. No dia da matança, logo manhã cedo, começavam a chegar os primeiros convidados; os parentes e amigos mais chegados, que vinham ajudar a matar e preparar o porco.
Serviam-se os primeiros copinhos de aguardente. Alguns faziam umas caretas, outros talvez lamentassem o tamanho do copinho, e ainda outros picavam o tabaco da horta e embrulhavam o seu cigarro em papel próprio ou casca fina do milho. Deitava-se o olho ao porco ainda vivo no curral, teciam-se alguns comentários sobre a vida e progressão do bicho: Se tinha sido de boa boca, se tinha sido sempre saudável, discutia-se e até se apostava o peso do animal que depois de morto era pesado para tirar as teimas, etc. Quando eram de má boca, havia quem procurasse certas “pessoas entendidas na benzedura do quebranto”, que através de alguns cabelos do animal, normalmente do rabo ou do lombo, “ lá lhe resolviam o problema”. Mais um copo de aguardente e, ouvia-se uma voz mais alta: É rapazes! vamos a isto! Os mais afoitos saltavam primeiro a dentro do curral de corda na mão para amarrar, primeiro o focinho do porco para não morder, e depois os pés e as mãos para não espernear, o que poderia estorvar a manobra do enfiar a faca. Era colocado sobre um tabuleiro, normalmente dois tabuões lado a lado sustidos por duas travessas de madeira ou uma porta velha sobre dois cestos, e o matador (ou marchante) lá lhe enfiava uma comprida e aguçada faca rumo ao coração, o que nem sempre acontecia, e era o diabo depois para sangrar o bicho, e uma vergonha para ele marchante. Nos próximos dias não se falaria noutra coisa. O sangue era aparado para um alguidar normalmente de barro - na altura ainda não existiam os plásticos - enquanto outra pessoa já o ia mexendo para não coagular de imediato. Depois era logo misturado nas cebolas que voltavam a ser amassadas juntamente com um bom cesto de asa de salsa picada, bastantes orégãos e o véu do porco e o cravinho, picados em pequenos pedacinhos. Aberto o porco, eram-lhe retirados os chamados “miúdos” e levados num alguidar para a cozinha, onde se procedia à separação das tripas para desmanchar e lavar; as do intestino grosso e o paio, eram para as morcelas, e as do intestino delgado para a linguiça.
De seguida, depois de muito bem lavadas as tripas do bicho com água, farinha de milho, limas azedas, sal, etc., eram cheias e cozidas as morcelas. Enquanto isto, alguns iam acabando de amanhar o porco, outros bebiam mais um copinho de aguardente. Os bofes (pulmões) e o coração eram para guisar com batatinha branca e arroz, para a ceia das visitas que vinham à noite ver o porco, e também os que “ viriam cantar as morcelas “, juntamente com umas morcelas fritas,peixe do almoço, o fígado e uns valentes copos de vinho do pico. À noite, era hábito, alguns, ou próximos da família ou mais arrojados, formarem um ranchinho. Já escuro e de surpresa, quando menos se esperava, desatavam a cantar e tocar tambor e ferrinho fora da porta da cozinha:

Ó Sr. dono da casa
Está direito, não está torto
Nós tivemos a notícia
Que matastes o teu porco

As morcelas eram grossas
O toucinho recheado
Dai-nos uns copos de vinho
Também delas um bocado

Ó Sr. dono da casa
Porta aberta e luz acesa
E uma morcelinha assada
Para cima dessa mesa.

Ó Sr. Dono da casa
E mais toda a sua gente
Há-de-nos também brindar
C’ uma pinga de aguardente.

Ó Sr. Dona da casa
Trabalho mal amanhado
Aguardente não é boa
Sem um figuinho passado.

Ó Srs. donos da casa
Bem nos podeis desculpar
Sabe Deus daqui a um ano
Quem vos virá visitar.

As tripas do intestino delgado, eram para encher a linguiça, feita com a melhor carne, depois de colocada numa vinha’lhos forte, temperada de preferência com laranjas azedas durante 4 a 5 dias num ou dois alguidares de barro, mexida e provada, várias vezes ao dia. Depois de pendurado o porco - em São Caetano normalmente pelo focinho - a um tirante num lugar próprio, na cozinha ou na loja, era aberto de cima a baixo agora pelas costas, onde eram enfiadas umas canas que, mantendo a carne aberta, mais facilmente enxugava. Lavavam-se as mãos e toca a chegar para mesa, pois já não era sem tempo. Estava-mos em Janeiro. Frio a rachar, e, com aqueles copinhos de aguardente o molho de peixe e o feijão assado no forno a bom cheirar que faziam crescer água na boca, um bom pedaço de queijo de São João com uma fatia de pão de trigo ou de duas farinhas, aquele vinho de cheiro do Pico escolhido para o dia... Tinha valido a pena. Depois do valente almoço, alguns lá caminhavam para suas casas ou trabalhar as suas vinhas, se o tempo o permitia. Era vê-los por aquelas vinhas, altura em que eram trabalhadas, ora trabalhando, ora encostados a um abrigo, (uma parede) com um saco de serapilheira de capuz ou um casaco velho por cima das costas, enquanto chovia ou caía granizo. Os ventos fortes e mais frios, eram predominantes, do quadrante Oeste a Norte. Ali contra aquela parede mais alta sempre fazia mais uma abrigadinha. Outros continuavam por mais algum tempo na conversa, e, iam então as mulheres e crianças para a mesa, para um também bem merecido almoço.
Durante a tarde enquanto umas enchiam e cosiam as morcelas, outras ocupavam-se de certas limpezas, e outras ainda, preparavam já o jantar para todos inclusivamente os convidados que haviam chegar à noite, ver o porco. No dia seguinte, logo de manhã, desmanchava-se o bicho, partindo-o aos pedaços, como melhor convinha. Primeiro que tudo, cortava-se um bom pedaço de toucinho e uma assadura do lombo, para: O Padroeiro São Caetano, sr. Padre, sra. Professora e normalmente para o sr. Guarda-Fiscal lá da Freguesia, depois para os parentes, vizinhos e alguns amigos a quem se deviam favores e ou atenções. A carne, os ossos e algum toucinho, eram salgados em salgadeiras de barro, muito bem escaldadas com água a ferver, muito bem lavadas e esfregadas com laranjas azedas, que sempre já deixavam ali um certo gostinho. O restante toucinho, era derretido em grandes caldeirões, de onde se extraía a banha para temperar a panela e para a frigideira, e os resíduos, os saborosos torresmos da graxa, como se chamavam.
Da linguiça, vendia-se uma parte, bem como uma lata da banha, para comprar um outro porquinho para o ano seguinte. Disse atrás que, da mercearia vinha o petróleo para a iluminação, mas, sou do tempo em que na iluminação das casas, era usado o azeite de baleia.
O azeite era queimado numa candeia de folha-de-flandres que, no meu tempo era feita no latoeiro lá da freguesia, “mestre António Lá’faia”, algumas de boca aberta, com uma asinha para se pegar, e um bico por onde saía uma torcida de fiado de lã de ovelha por onde subia o azeite que ia sendo queimado. Outras tinham a sua tampinha.O fumo que fazia e o cheiro que espalhava pela casa… espantava também os ratos.

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