31 de março de 2009

PROVÉRBIOS

- O primeiro negócio do mundo, é poupar;
- Ninguém ganha coisa que não possa gastar;
- No poupar, é que está o ganho;
- Quem come e guarda, duas vezes põe na mesa;
- Quem compra, herda-se; Quem vende, deserda-se;
- Compra a quem herdou e não a quem comprou, etc.

ARTÍFICES DA FREGUESIA

A TENDA DO FERREIRO

A tenda do Cambóio, era também um lugar onde gostávamos de ir especialmente em dias de Inverno. Chegávamo-nos para perto da forja e ou bigorna, e sabia tão bem aquele calorzinho. Às vezes para compensar aquele conforto, puxávamos o pau do fole, enquanto o ferreiro batia com grande malho o ferro quente e vermelho na assafra, procurando dar forma à próxima ferramenta.
Quando o Sr. João Cambóio estava bem disposto, lá lhe pedíamos com jeitinho para nos fazer uma faquinha deferro que se encavada num pedaço de pau e que dava sempre muito jeito, servindo de navalha.
A pedreira de pedra mole (própria para fazer fornos e chaminés), era um exclusivo nosso na ilha do Pico e até se vendia pedra desta também para a Ilha do Faial. Era transportada nos barcos de boca aberta, e na lancha das Lajes do Pico “Hermínia” que saindo em carreira normal da Vila das Lajes para a Horta e vice-versa, uma vez por semana, e escalava o porto da vizinha freguesia de São Mateus.
Nesta especialidade, ganhou-se algum dinheirinho, relativamente a outras actividades, por exemplo: um litro de vinho vendia-se normalmente por 2$00 um litro de leite 1$00, um pão 1$10, uma carteira com 24 cigarros triunfo 1$10, enquanto se vendia a pedra para um forno e uma chaminé por 260$00 (duzentos e sessenta escudos)
Era ainda, um serviço de aproveitamento dos tempos perdidos com a chuva ou mau tempo, pois era um serviço que se podia fazer com essas situações, para mal dos meus pecados e dos meus irmãos mais velhos, que ao contrário dos outros rapazes que jogavam à bola, ao pião, à pata, às cartas, ao sete e meio, ao macaco na taberna do Tio António Medeiros, etc., “era na pedreira o nosso lazer”.
Havia trabalho para todos os dias e para todo o ano, à excepção dos Domingos e dias Santos, e, quando escasseava um pouco, lá iam os meus irmãos mais velhos Mário e o Celestino, trabalhar uns tempos na abertura e alargamento de estradas que se executavam naquele tempo na ilha, sempre era mais aquele dinheirinho que entrava no cofre geral e único, que sempre existiu lá em casa.

A TENDA DO SAPATEIRO

A tenda de sapateiro que conheci em São Caetano, era do simpático velhinho, “mestre Manuel Gravito”.
Era na sua sala de fora que tinha montada a tenda e que recebia os seus clientes.
Na mesma sala, funcionava também uma barbearia, pertencente ao genro Manuel Nunes da Silva.

OS DIAS DE ÓCIO

Os Domingos e dias Santos, eram os dias em que se descansava, depois de tratar dos animais, vacas, cabras, etc., salvo na época das vindimas que até nesses dias se vindimava, pois havia sempre o receio que pudesse chover e estragar as uvas.
Os mais velhos, juntava-se no lugar da empena da cooperativa, em cima do alto, conversando, fazendo e fumando uns cigarros. Sentavam-se numa bancada de pedra que ali existia, e outros no balcão do Tio José Leal, conforme os ventos sopravam. Uns conversavam, outros escutavam cortando pauzinhos com a sua afiada navalha, enquanto outros picavam (cortavam) o tabaco para fazer o seu cigarro com o tal tabaco da horta. Haviam também os que só tinham vontade de fumar e, para não dar muito nas vistas, pediam uma coisa a um, outra a outro, até completar o cigarro.
Era comentado com certa graça o caso dum indivíduo bem conhecido lá no meio que, picava o seu tabaco quando o tinha, e pedia ao amigo do lado o papel para o embrulhar, e, logo de seguida, voltava: “dá-me mais um papel que eu piquei tabaco demais”. Sempre aproveitava mais aquele papelinho. Um livro de papel da marca “Touro” tinha 100 folhas e custava $80 (oitenta centavos). Os rapazes jogavam ao peão, à pata, à barra, etc. e ao sete e meio a cigarros, etc.

A MINHA ESCOLA PRIMÁRIA

A minha velha escola já está há muitos anos abandonada.
Aos sete anos entrei para a escola primária – no ano de 1947 – só se podia matricular quem tivesse sete anos feitos a sete de Outubro de cada ano, data em que abria a escola. Eu fazia os sete anos a 13 de Dezembro, pelo que, quando entrei, tinha quase oito anos.
Foi minha primeira professora a Senhora Dona Guida Fialho, ela também no seu primeiro ano de ensino com os seus dezoito anos. Senhora muito bonita, meiga e de muito bom feitio. Nos anos seguintes, a Senhora professora Dona Rosa do Coração de Maria Alves, senhora madura, exigente disciplinadora e muitíssimo briosa na sua profissão.
A minha escola era mista, com cerca de sessenta alunos de ambos os sexos. Era pequenina, mas ali se construíram grandes alicerces humanos, tanto na formação, como também na educação.
No meu tempo, na escola não se aprendia só a ler e escrever, mas também, moral, religião e bons costumes.
Aos Sábados havia canto coral, educação cívica, jogos e brincadeiras. Aprendia-se a brincar e a cantar, nomeadamente o Hino Nacional, o Hino da Escola, etc.
Parece-me estar a ouvir a minha saudosa professora D. Rosa Alves a ensinar e cantar connosco o hino da Escola que era assim:

A nossa escola é um hino redentor
Onde a nossa alma vem buscar alento
E a meiga voz do nosso professor
Acompanhada de Juvenal amor
É cá p´ra nós carícia e sentimento

Abençoada Escola
Que a todos acarinha
Que anima e que consola
E a Deus nos encaminha

É fogo que acrisola
Nossa alma pequenina
Viva a risonha Escola
Da aldeia da Prainha.

Que saudades daqueles santos tempos, em que, nós os rapazes, jogava-mos ao vintém, com dinheiro de outro tempo (monarquia), ao peão, à pata, à barra, etc. enquanto as raparigas faziam roda e cantavam: O Jardim da Celeste , etc.
Tenho também as melhores recordações dos livros que utilizei e que ainda hoje conservo, nos quais aprendi muitas coisas que me ajudaram a gerir a minha vida.
Aos onze anos, completei o ensino primário, com distinção.
Da minha escola, tenho as melhores recordações. Das professoras amigas, dos colegas e amigos que durante muitos anos perdi de vista e que agora, os anos que nos caíram em cima nos trazem constantemente à memória, dos jogos e brincadeiras, e especialmente de certas cenas que hoje me parecem um sonho. Também recordo, aquele pedacinho de lápis de ardósia que, quando nova e inteira, com os seus cerca de 12 centímetros, havia custado $10 (dez centavos), mas que, era preciso aproveitar enquanto escrevesse. Por fim, quando já não se conseguia pegar bem com os dedos, metia-se num pequeno e fino canudo de cana de bambu ou até de hortênsia.
Não podendo continuar os estudos, como era meu desejo, o que era quase impossível naqueles tempos para uma família de fracos recursos financeiros numa freguesia rural da Ilha do Pico, lá continuei a trabalhar nos campos junto com meu pai e irmãos. Nesta altura já possuíamos terrenos por todos os cantos da freguesia. Terras de pão, de vinhas, de pastagem, de lenha para queimar e monda para os estrumes dos campos, etc., não faltavam.

CURTUME DE PELES

OS CURTIDORES

Era em São Caetano que havia o maior número de curtidores de peles. Lá conheci pelo menos dez dessas indústrias familiares a funcionar ao mesmo tempo.
Estes transformavam as peles em sola e carneira. A sola era a pele dos animais maiores, bois e vacas e a carneira dos bezerros e cabras que, depois de muito bem trabalhadas eram depositadas nuns poços com água e cal para lhe retirar o cabelo. Depois eram passadas a cutelo para descarnar e tirar impurezas. Depois eram novamente depositadas no mar amarradas com correntes durante vários dias.
Entretanto, na falta de outras drogas próprias para a curtimenta e ou de dinheiro, os curtidores arrancavam faias donde lhe extraiam a casca das raízes, que depois de muito bem batida, era colocada juntamente com as peles a curtir num poço. A seu tempo era pregada com pregos numas tábuas e postas a secar ao sol e, depois de bem secas, eram cortadas às tiras e vendidas.
Com a sola, faziam-se as aparcas, com a carneira, faziam-se as correias, para atar quer as botas, quer as aparcas e ainda as luvas para mondar as mondas agrestes, as silvas, para curtir em estrume no curral do porco e que seria utilizado especialmente nas sementeiras e culturas diversas. Era com o estrume dos animais que se estrumavam as terras, hoje a chamada agricultura biológica. No tempo, não existiam adubos.
Quase todos os curtidores, iam vender a maior parte da sua sola, cortada às tiras e metidas num saco às costas, para as outras Freguesias. Era tal palmilhar quilómetros, porta-a-porta, freguesias fora.
Às alparcas feitas de sola e com umas arreatas de carneira, eram pregados uns pedaços de borracha, extraída normalmente do meio dos pneus deixados de ser usados pelos automóveis, borracha essa que não era barata nem fácil de encontrar, pois os automóveis eram muito poucos, relativamente à procura.
Mais tarde, a melhor borracha, vinha da base aérea das Lajes da Ilha Terceira, proveniente dos pneus dos aviões, essa mais larga e de muito melhor qualidade, e por conseguinte maior duração.
Havia pobreza, mas hoje em dia, apesar da muita abundância, em certas casas, penso que não há a alegria que, apesar de tudo, reinava naqueles tempos. E como diz o povo, ainda a procissão vai no adro.
Mesmo assim, já havia quem dissesse: “vale tudo menos tirar olhos”, hoje, começa-se por tirar os olhos, pois já facilita as coisas.
No meu livro de leitura da 4ª. Classe do ensino primário, como se chamava, li no rodapé de um trecho, um pensamento salvo erro de Eça de Queirós, que sempre me norteou por toda a minha vida:

“A nossa melhor recompensa... É a paz da consciência”

O PASTOREIO

Era agradável levantar cedo, nos dias em que, por qualquer razão íamos para os matos, e acompanhar os pastores, madrugada cedo, rumo às vacas.
Lá em casa, era o meu irmão Celestino, que normalmente se ocupava das vacas, isto no que concerne especialmente à sua ordenha. Por vezes, consoante a distância a que as vacas se encontravam, era preciso sair de casa cerca das duas horas e meia três da manhã, para percorrer oito a dez quilómetros para cada lado, por veredas e atalhos com muito mau piso, saltando portais com as pesadas canecas de madeira de cedro atrás das costas penduradas numa foice, onde se cruzava o bordão – cajado. Havia que chegar muito cedo às vacas, caso contrário seria difícil ordenhá-las. As moscas eram tantas, que o animal não parava com os pés e com o rabo, tentando sacudir as moscas, mas muitas vezes, lá se ia também a caneca e por conseguinte o leite
Parece-me estar a ver o Tio João Jacinta, com uma pequena caneca de madeira de um litro – à qual eu achava muita graça - pendurada na foice juntamente com um molhinho de milho basto ou espiga de milho, a caminho da pastagem, (do mato) percorrendo os tais quatro a cinco quilómetros para cada lado, ordenhar a sua cabra. Não tenho a certeza se no regresso a caneca de um litro vinha cheia ou não. Contudo, havia também alegria e outras coisas que recordo com muitas saudades. Parece-me estar também a ouvir o Jacinto Pereira Evangelho, já falecido, a tocar o seu búzio, todos os dias, manhã cedo, quando chegava junto das vacas fora da encumiada.
Tocava-o tão bem que parecia um rouxinol. Apesar da muita distância, ouvia-se em toda a freguesia, no silêncio das manhãs do verão. O mesmo acontecia com o António Cambóio, quando chegava ao cabecinho, (pastagem alta) onde tinha também o seu búzio escondido debaixo dumas leivas.

PASSEIO AO BALDIO - O Ajuntamento do Gado

O ajuntamento do gado bovino na serra, era no dia 22 de Setembro de cada ano – o dia seguinte à festa de São Mateus, na freguesia do mesmo nome. Nas Juntas de Freguesia, havia o arrolamento para pôr o gado ovino (ovelhas e carneiros) a pastar nos baldios sob a administração da Câmara Municipal, onde era efectuado um registo próprio do sinal de cada pastor, com as suas marcas próprias no gado. As marcas eram do género: “ ovelha branca com a orelha direita traçada na ponta e duas mossas; orelha esquerda, rachada na parte de cima e um furo a meio “
“ Um carneiro preto, com a orelha direita rachada e dois furos na esquerda “ etc. etc.
Madrugada muito cedo pastores e curiosos, largavam das várias freguesias em romaria a pé com seus farnéis no sarrão, um grande corno de boi cheio de vinho para a viagem amarrado com um cordão nas armelas colocadas nos dois extremos e pendurado ao ombro, e lá se iam encontrar não lugar da serra da Madalena, donde partiam todos juntos rumo aos baldios juntar o gado com a ajuda dos cães. À medida que iam apanhando o gado, iam-no concentrando no curral da Câmara Municipal onde eram depois separados pelas respectivas freguesias. Depois do ajuntamento, comiam e bebiam provando o vinho “dos cornos uns dos outros”, e lá seguiam a pé, conduzindo o gado, rumo às suas freguesias.

A SEPARAÇÃO DO GADO

No lugar do costume, já na freguesia, havia sempre muita gente à espera de ver a chegada do gado. Juntavam-se as pessoas para ver aquela festa e os donos do gado a escolher novamente os seus animais, pelas marcas. Haviam pessoas que só tinham uma ou duas ovelhas, e pediam aos amigos que lhas procurassem e trouxessem, juntamente com as deles.
Nos dias seguintes, procedia-se à tosquia das ovelhas. Eram tosquiadas duas vezes por ano. Em Março, antes de irem para o baldio e em Setembro, após a chegada. Tosquiadas as ovelhas era colocadas nas vinhas depois de vindimadas, sempre havia por ali umas ervas ainda verdes e outras já secas com que elas se entretinham. Os maiores pastores, vendiam então a sua lã, que era uma das fontes de receita daquelas famílias. Lembro-me com muitas saudades, como se fosse hoje, da minha mãe me dizer: “Vai a casa do Sr. João Correia, e diz à Tia Rosa Pintassilga – sogra dele – que venda duas libras de lã, que a mãe depois passa lá a pagar”.
Estou como quem está vendo a Tia Rosa com os seus oitenta e muitos anos, à procura da balança e dos pesos. Era uma balança de dois braços com um ponteiro a meio, cujo equilíbrio se verificava na peça que também servia de suporte, presa na mão. Aos pesos, eu achava muita graça; eram pedrinhas lisas do calhau, muito bem aferidas, e com um orifício onde se prendia a ponta do gancho de um dos lados da balança, brilhantes da gordura das ovelhas que a lã continha. Havia pesos de libra e meia libra. A lã era utilizada na nossa casa, como aliás nas dos demais, especialmente para, depois de muito bem lavada, cardada e fiada, neste caso pela minha mãe, fazer as meias para os homens, sempre protegia e aquecia os pés dentro dumas aparcas feitas com uma tira de pele de vaca curtida nos curtidores artesanais. Mas, meias de lã, só para os mais velhos e ou mais abastados.

FESTA DO NATAL

Aproximava-se o Natal. Vinham aí as novenas, não se podia faltar. Além da componente religiosa, serviam não só de protesto para sair de casa à noite, o que não era autorizado naquela época, mas também para encontrar os amigos e ver as raparigas.
Cerca de três semanas antes do Natal, as pessoas, em quase todas as casas, punham o trigo em pequenos pratinhos com água, para abrolhar e estar crescido e bem verdinho para ornamentar os altarinhos do Menino Jesus e os presépios. A Senhora Beliza Nunes, era quem fazia o altarinho mais bonito e mais concorrido. Era ali que eu ia mais a minha mãe durante os quinze dias de novena, rezar e cantar ao Menino Jesus.
Parece-me estar a ver e ouvir a minha Avó Margarida Marques, normalmente a orientadora do terço e outras pessoas daquele tempo, que recordo com muita saudade.
Haviam os chamados ranchos do Natal, compostos pelos melhores instrumentistas de cordas. A guitarra, normalmente bem tocada pelo Manuel Correia da Silva, o bandolim, pelo meu tio Deodato Marques, o violino, pelo António da Vigia, o violão pelo Prudêncio, a viola, o ferrinho e as melhores vozes dos jovens e adultos que cantavam os mais lindos versos alusivos à quadra Natalícia. Nestes ranchos, haviam normalmente duas pessoas que cantavam à frente os versos, e um grande coro que cantava atrás, uns e outros a duas vozes. Era hábito, os donos da casa brindarem os intervenientes no rancho quando acabavam de cantar, com aguardente, angélica, aniz ou traçado, normalmente bebidas caseiras, que quase todos tinham, acompanhadas por uns figos passados e ou umas bolachinhas. Atrás destes ranchinhos, juntavam-se muitas pessoas, nomeadamente os mais novos, para os ir ouvindo cantar pelas casas que normalmente os recebiam e onde se juntavam também muitas pessoas durante o serão. Era também hábito, as pessoas visitarem os presépios e os altarinhos na quadra do Natal, para ver qual era o mais bonito. Quando o rancho era considerado mesmo bom, visitava também as freguesias vizinhas.
No dia de Natal, à tarde, havia a procissão do Menino Jesus, com as crianças levando as suas ofertas. Um levava um galo, outro uma galinha, outro uma dúzia de ovos, uma perna de massa sovada, uma cesta de laranjas, uns biscoitos, uma garrafa de aguardente, um garrafão de vinho, um cesto de asa de batatas, etc. etc.
Recolhia a procissão e principiava o arraial, com música de filarmónica, enquanto se procediam às arrematações das ofertas. Os mais afoitos lá iam picando e cobrindo o último lanço. Era uma forma de ajudar a receita da igreja e sempre se levava qualquer coisa para casa. Afinal, eram dias de festa. Alguns aproveitavam também a oportunidade para exibir as suas posses.
Na semana seguinte, era o Fim do Ano. Ano Novo e novamente os seus “ranchinhos”, agora com novos versos desejando um FELIZ ANO NOVO. Contavam-se os dias com esperança e alegria.
Normalmente, para as coisas da igreja, não faltava tempo. Minha mãe, tinha sempre tudo controlado, para que, ninguém – muito especialmente ela – faltasse a novenas ou qualquer devoção que houvesse na igreja da freguesia.
Havia uma época do ano que me impunha muito respeito. Era o mês de Novembro o chamado mês das almas.
Nos altares laterais da igreja de São Caetano, eram colocados quadros do purgatório e até do inferno, com figuras tão feias que não lembrava ninguém. Era o Diabo com cornos enormes, dentes a condizer, garras de leão, todas num ar de grande sofrimento, para lembrar o Inferno. Para o Purgatório, eram as alminhas também em sofrimento espiando as suas penas.
Havia missa pelas alminhas do purgatório às cinco horas da manhã e novamente devoção às sete da noite.
Os sinos, dobravam como se tivessem anunciando a morte de alguém na freguesia ou por altura dos funerais.
Muitas das pessoas, como eu também, sentiam-se aterrorizadas. Só viam e sentiam almas por todo o lado naquele mês. Nós, os mais novos, tínhamos medo de sair de casa à noite ou de manhã cedo, especialmente os que ia às pastagens altas ordenhar as vacas, que saíam de casa madrugada cedo. Parece-me estar a ouvir a minha mãe que vinha sempre à porta à saída e, a chorar recomendar sempre que fossemos rezando para ajudar a passar o caminho.

FESTA DO SENHOR BOM JESUS

A seguir, vem a grande festa do Senhor Bom Jesus Milagroso, que se venera no Santuário da vizinha freguesia de São Mateus, aos seis dias de Agosto de cada ano.
Semanas antes, preparam-se todos os caminhos, pintam-se as casas, enfeitam-se as ruas, colocam-se centenas de balões de papel de várias cores com uma vela de cera no seu interior onde irá funcionar o arraial – normalmente até ao lugar do Passo. Quase toda a gente recebia romeiros doutras paragens. Na véspera, o conhecido dia do “fogo preso“, principiava o arraial.
Tocavam as filarmónicas constantemente, os amigos encontravam-se; uns passeavam no arraial outros, os que podiam, comiam e bebiam nas tascas os mais saborosos petiscos e mariscos acompanhados do bom vinho do Pico, outros ainda iam dar a sua pancada na Margarida.
Margarida era uma mesa redonda com pequenos pregos à sua volta, por onde passava a palheta duma roleta, onde se encontravam alguns brindes, normalmente chocolates, uns maiores, outros mais pequenos, e, onde a palheta parasse, era o prémio que se havia ganho. Cada pancada na Margarida custava um escudo. Ao lado, o José do Chico embalava com o pé sobre uma roda o seu “Bismark” – um carrinho feito em madeira, com três rodas, em forma de navio, pintado de branco – enquanto ia anunciando os seus saborosos sorvetes: “ Olha o belo sorvete ananás que alegra a rapariga, satisfaz o rapaz e refreca as ideias. Custa apenas cinquenta centavos ($50) e cura a dor do apêndice, quando no hospital custa 1.200$00 (um conto e duzentos)… ICE CREAM… De facto eram saborosos, e para quem só tinha aquela oportunidade uma vez por ano, havia que aproveitar, havendo os $50, claro. Mais além via-se uma barraca com alumínios, latas, funis, candeeiros panas de todos os tamanhos, etc. etc. onde se podia comprar um envelope fechado contendo um número que indicaria a nossa sorte pela quantia de 2$50 (dois escudos e cinquenta centavos).
Ao lado, estava a barraca das latas. Eram cinco latas sobre uma tábua, colocadas a uma certa distância. Jogar três bolas de trapos, custavam também os mesmos 2$50, que se atiravam às latas. Quem conseguisse atirá-las todas ao chão duma só vez, ganhava uma cerveja que custava 3$50. Veja-se o lucro, e quando calhava. Normalmente, saia dali cada uma cara triste que nem me quero lembrar. Debaixo dos plátanos, à sombrinha, lá estavam os vendedores de fruta da Criação Velha com os seus cestos de vimes brancos cheios de uvas – preta e branca – figos, maçãs, peras, maracujás, etc. cujo cheiro ia longe e fazia crescer água na boca. Para muitos… “ estava verde “. Pelo arraial, passeavam-se as pessoas, entre as quais, algumas mais carismáticas, e que os rapazes de quem o diabo fugiu, gostavam de encontrar. Era o tio José do Salão, pequenino, e de pescoço franzido a quem os rapazes achavam graça, pois ele até dizia que empalhava garras e garrafões com vimes, era o João das muletas, era o José Moreia, o Samacaio, etc. Por outro lado eram da praxe, as cantigas ao desafio. Todos os anos, lá apareciam, o Tio Brasil, o Funchinha e outros. Em pleno arraial, e a pedido das pessoas, lá cantavam ao desafio com as mais afinadas vozes as picantes quadras. Eram pessoas dotadas dum tal dote, que improvisavam uma quadra a pedido dos interessados, dum momento para o outro. Consta-se que um desses cantadores, o Funchinha, que mais tarde terá falecido de cancro na próstata, no Hospital da Horta, já às portas da morte, ao ser visitado pelo seu médico, o Dr. Campos, este, na expectativa de o animar, pediu-lhe para que cantasse uma cantiga. O Funchinha, que já mal lhe saía a voz, reconhecendo a sua situação, acedeu, e lá vai:

Se eu não tivesse dores
Nem sofresse das urinas
Cagava para os Doutores
E p’rás suas medicinas

Do Faial, vinham dois ou três Polícias, mais que suficiente para resolver quaisquer mal entendidos que eventualmente pudessem acontecer.
Animador que não podia faltar na festa, era o José Fonseca, lá de São Caetano. Levadinho do diabo, pegava com todos, até com o pobre do Tio José do Salão. Um dia, chegou-lhe a brasa dum cigarro ao pescoço. Metia dó ver o pobre velhinho a gritar e a correr sem poder e sem saber o que fazer nem onde se devia meter. Abaixo do adro, nas escadarias de pedra, eram montadas as tribunas, todas seguidas, onde tocavam as filarmónicas. Quando não tocavam, as pessoas iam lá para cima, pois era lugar vistoso onde se descobria a maior área do arraial, e um eventual amigo ou amigo que já não se tinha visto há anos.
Por debaixo do mesmo, andavam os rapazes a brincar, normalmente com as canas dos foguetes.
Uns esforgulhavam para cima, outros para baixo a ver quem atingia primeiro o outro, e outros ainda, os mais maldosos punham-se a vigiar pelas frestas das tábuas, quaisquer distracções das pessoas que estavam na parte de cima. Era a força do verão, e daí o muito calor. Estou a ver o José Fonseca, a enfiar a sua cana de foguete, até onde pôde, como quem fisga um caranguejo.
Isto prolongava-se pela noite dentro até depois da meia-noite para alguns e até de manhã para outros, alguns curtindo grandes bebedeir. No dia do fogo, a véspera da festa, nas traseiras da igreja, procedia-se à arrematação do gado – bezerras, vacas e bois – proveniente das muitas promessas feitas ao Senhor Bom Jesus por algumas pessoas em horas de aflição e que revertiam a favor da paróquia.
Enquanto isto, alguns dos balões de papel, quando a respectiva vela chegava ao fim, lá se iam incendiando ao que o pessoal fazia um grande alarido.
No dia seguinte, 6 de Agosto, a festa continuava. À tarde, cerca das dezanove horas, saia a procissão com a imagem do Senhor Bom Jesus, prosseguida dos “anjinhos” e outras pessoas, cumprindo as suas promessas com grandes tochas de cera, e até algumas de joelhos no chão, acompanhadas de familiares e de muitas pessoas, a toque das muitas filarmónicas, distribuídas pela mesma. Normalmente, e apesar da grande extensão do giro da procissão, antes de acabar de sair, já entrava o guião da frente e as primeiras pessoas.
Depois da chegada da imagem, esta era voltada para o público e, em jeito de despedida, era tocado o seu Hino, pela totalidade das filarmónicas, normalmente sob a regência do professor Sr. José Inácio Garcia de Lemos, músico e dirigente destas festas. Entretanto, as pessoas continuavam a pagar as suas promessas, quer entregando as suas esmolas em dinheiro aos pés da imagem e recebendo uma estampa e ou medalha do Senhor, quer dando voltas à igreja de joelhos, algumas já com eles em sangue, amparadas por familiares.
No interior da igreja, os padres pregavam sermões, a pedido das pessoas, cumprindo também as suas promessas. À noite, prosseguia o arraial, enquanto alguns, os de mais longe iam rumando a suas casas nomeadamente os do Faial, que iam procurando os autocarros, rumo à Madalena, onde apanhavam as lanchas para a Horta.
Assim terminava a festa. Cada um para suas casas. Havia que esperar mais um ano por igual dia.