31 de março de 2009

CENAS DA ÉPOCA

A CASA DE PALHA

Contava meu pai e os mais antigos que a pobreza era tanta em certas casas, que o avô da rapariga atrás referida e que tinha uma família muito numerosa, vivia numa casa de palha – coberta com palha de trigo – com apenas uma porta para a empena. Era tão “grande” a casa (!!!), que aquele, aproveitava em noites de bom tempo, para esticar as pernas, pela porta fora.
Um filho desse senhor, que eu bem conheci, o pai da rapariga acima referida, também pai de dez filhos e que viviam exclusivamente do mar, tal era a pobreza, que levava para comer durante o dia de pesca, um quarto de bolo – um quarto de bolo, era mesmo a quarta parte dum bolo espalmado feito com farinha de milho escaldada e amassada com água a ferver e um pouco de sal, e, normalmente cozido num tijolo de chapa de ferro sobre o lume feito com lenha, com aproximadamente, 1 a 1,5 centímetros de espessura e um diâmetro entre 20 a 30 centímetros.
Às tantas do dia, partia um pequeno pedacinho e dava a cada um dos dois filhos que o acompanhavam, e, se caía algum farelinho, juntava-o e metia-o na sua boca, era esse o quinhão dele. Havia também uma barça feita com aduelas de madeira de cedro, feita nos marceneiros, com água, que, antes do sol a aquecer matava a sede e sempre ia dando para atenuar algumas agastúrias do estômago. Não eram poucas as pessoas que, por necessidade e falta de dinheiro, iam ao porto, “à costa” como diziam, esperar os barcos que viriam da pesca local, aí por cerca do meio-dia, para ajudá-los a varar, “para ver se lhe davam uma varagem” – varagem, como lhe chamavam era um brinde, que oferecia o dono ou mestre da embarcação a quem os ajudavam a varar – neste caso um pequeno peixe que, com umas folhas de salsa, alho, sal e água, sempre faziam um simples caldo que enganava um pedaço de bolo ou umas batatas. Eram tantas as dificuldades, que, no Inverno, com ventos fortes do quadrante sul, que nesta freguesia, empurrava para a terra, viam-se alguns mirolhos a vigiar se o mar trazia qualquer coisa atirada ao mar de bordo de algum navio, uma garrafa, um garrafão, uma lata, um fardo de borracha, um pau de madeira de África, etc. Quando avistavam qualquer coisa, mesmo que uma simples garrafa, que fazia muito jeito, despiam-se e atiravam-se à água, estivesse ou não o mar bravo, por vezes pondo a própria vida em risco, antes que o objecto batesse nas pedras e se partisse.Meu pai, aquele que não queria que nada nos faltasse para comer, na medida das suas possibilidades relativas ao tempo, além de muitas terras, tinha também a sua cédula marítima.
À medida que a família foi crescendo e o trabalho aumentava, não havia tempo para ele ir à pesca. Depositou então a sua cédula marítima na Delegação Marítima das Lajes do Pico, temporariamente, pois assim não havia a obrigação de pagar a assinatura anual, que eram 5$00 (cinco escudos), hoje 2,5 cêntimos. Nessa altura, era frequente algumas pessoas comprarem uma ou meia soldada de peixe a certos pescadores, especialmente os proprietários das embarcações que tinham direito a várias soldadas, permanentemente, ou seja: sempre que aquele ia à pesca. Era uma para a embarcação, uma para os aparelhos (apetrechos) e uma e meia para ele na sua qualidade de mestre. Durante alguns anos, tivemos uma dessas soldadas comprada, e que custava 1000$00 (mil escudos) por ano, hoje, 5 euros. Quando os filhos cresceram e foram dando conta do trabalho, voltou a actualizar a sua cédula marítima, e ia ele como marinheiro, buscar a sua soldada de peixe para a fartura da família. Havia tal fartura, que sobrava para dar a algumas pessoas da família e até vizinhos. Mais tarde, depois dos meus catorze anos, foi a minha vez de fazer também inscrição marítima, licença indispensável para se poder embarcar como tripulante em qualquer embarcação. Se por um lado eu até gostava de ir ao mar, por outro, havia que assegurar o conduto para casa. Gostava imenso de ir pescar ao chamado peixe de cima de água, de verão. Eram as cachorras (bonitos) e as bicudas (barracudas). Normalmente ia no barco do Tio Francisco Jorge. O mestre era o Francisco, o filho mais velho e por sinal meu vizinho. Como campanha, iam os irmãos dele António e Hermenegildo, eu, o meu amigo de infância Adelino Cambóio, meu tio Deodato e o Francisco da Vigia. Certa noite do mês de Setembro de 1956, arreamos com muito bom tempo. A certa altura, pouco depois da meia-noite, estava-mos ali na marca, fora da Terra do Pão, pescando de linha às bicudas. Por sinal, estava a ser uma boa noite de pesca. Tinha-mos dentro do barco talvez mais de um cento delas. Entretanto, começamos a sentir-se passar por debaixo do barco uns rolos de mar, que aos poucos foram aumentando. O vento era do quadrante Sul. Formavam-se muitas nuvens negras, no horizonte. O mestre, o Francisco Jorge recentemente falecido, ordenou: Aparelhos para a borda e vamos a remar rapidamente para terra. Começavam a ver-se os relâmpagos e a ouvir trovoar por todo o lado. Remava-se aos quatro remos, rumo ao porto. As ondas, continuavam a crescer. A trovoada a aproximar-se. Ao longe, via-se no cais uma luz de petromax (luz a petróleo). Era o Florindo, o João de Manuel da Ritinha e o Aldemiro que já haviam varado, e vendo o tempo a crescer, davam sinal aos outros que ainda estavam no mar, para regressarem rapidamente a terra.
O mar, cobria já o cais de ponta a ponta. Eram vagas de 3 a 4 metros, que de vez em quando davam algum descanso. Quando nos aproximávamos do cais num desses momentos de descanso, aqueles que estavam em terra, gritavam: Não encostem! Não encostem! Sigam de vez para o varadouro com tudo a bordo. A chuva, era quanta Deus mandava, acompanhada de forte trovoada . Neste momento, apaga-se-nos a luz. Às escuras, o Francisco não tendo percebido o que lhe diziam de terra, tenta pôr um homem ou dois em terra para passar e segurar o cabo do revés e outro para alar o cabo da proa como era costume, o que até conseguiu. Foi o António Jorge que fora passar o cabo de revés. Cabos muito frágeis feitos com a tal filaça ou espadana, seca e torcida com uns torcedores de pau; vem uma enorme vaga de mar, o Francisco grita: aguenta o revés! aguenta o revés! O António dá duas ou três voltas com a corda ao pau da ponta do cais, segura bem, mas a força do mar era maior. A corda rebenta, e o barco atravessa-se.
Vem a segunda vaga de mar, volta a embarcação, vem a terceira e a quarta, e, fica tudo à deriva embrulhados na água, barco, bicudas, albarcas, cestos de asa, remos, tilhas, etc. etc. .Ouviam-se os gritos. Todos imaginaram o pior. Quando o mar voltou a acalmar um pouco, estavam cada um para seu canto. Eu fui projectado pelas ondas para cima dumas rochas, ali ao lado direito da entrada do caneiro, onde me consegui agarrar. Um ou outro sempre se conseguiu pôr a salvo sem grandes moléstias, o António e o Hermenegildo, ao tentarem equilibrar o barco na tentativa de o salvar de grandes prezuízos, ficaram debaixo dele e por conseguinte com as pernas todas esfarrapadas. Com a ajuda dos que estavam em terra, sempre se varou o barco, que ficou muito danificado. Ninguém pensava mais em bicudas nem alparcas. Parecia um sonho o que acabava de acontecer. Enquanto isto, o Neves, jovem afoito, amestrando o barco do tio dele, José Mateus, continuava pescando, como que se nada se passasse, indo um pouco ao sabor da maré, já do porto para Oeste, ali para os lados da ribeira velha. Fomos nós que depois de terminada a nossa penitência, os ajudamos a salvar, evitando que passassem pelo mesmo. Estes e as suas bicudas, sãos e salvos, fizeram as suas partilhas, esquecendo aqueles que os haviam ajudado a salvar e que tinham ficado sem uma bicuda para o caldo. Na vida de cada um, há sempre coisas que marcam, mais que outras talvez até mais importantes. Para mim, esta é uma delas. A certa altura, era eu companheiro de pesca do Tomé, proprietário duma pequena embarcação. No dia seguinte, iríamos à pesca das garoupas e peixe-rei. O melhor isco era a moira – pequenos caranguejos – que se apanhavam à mão, uma a uma, entre as pedras à beira mar.
Foi então que, eu mais o meu vizinho e amigo Eduardino, fomos ali para o lado do porto, abaixo do poço de maré, virar pedras e apanhar moira. Ao mais pequeno descuido, o Eduardino que estava ali à minha frente, de costas viradas para mim, atira uma pedra com muitos quilos para trás, e, onde a pedra havia de cair? Precisamente onde eu tinha a minha mão direita, apanhando-me a cabeça do dedo polegar, cuja unha se descolou. O sangue corria abundantemente e eu, corria direito a casa, levar aquela oferta à minha mãe. Esta sem hesitações, e, a chorar lágrimas gordas, lá me acompanhou ao Sr. Correia da cooperativa, fazer o respectivo curativo.

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