31 de março de 2009

PROVÉRBIOS

- O primeiro negócio do mundo, é poupar;
- Ninguém ganha coisa que não possa gastar;
- No poupar, é que está o ganho;
- Quem come e guarda, duas vezes põe na mesa;
- Quem compra, herda-se; Quem vende, deserda-se;
- Compra a quem herdou e não a quem comprou, etc.

ARTÍFICES DA FREGUESIA

A TENDA DO FERREIRO

A tenda do Cambóio, era também um lugar onde gostávamos de ir especialmente em dias de Inverno. Chegávamo-nos para perto da forja e ou bigorna, e sabia tão bem aquele calorzinho. Às vezes para compensar aquele conforto, puxávamos o pau do fole, enquanto o ferreiro batia com grande malho o ferro quente e vermelho na assafra, procurando dar forma à próxima ferramenta.
Quando o Sr. João Cambóio estava bem disposto, lá lhe pedíamos com jeitinho para nos fazer uma faquinha deferro que se encavada num pedaço de pau e que dava sempre muito jeito, servindo de navalha.
A pedreira de pedra mole (própria para fazer fornos e chaminés), era um exclusivo nosso na ilha do Pico e até se vendia pedra desta também para a Ilha do Faial. Era transportada nos barcos de boca aberta, e na lancha das Lajes do Pico “Hermínia” que saindo em carreira normal da Vila das Lajes para a Horta e vice-versa, uma vez por semana, e escalava o porto da vizinha freguesia de São Mateus.
Nesta especialidade, ganhou-se algum dinheirinho, relativamente a outras actividades, por exemplo: um litro de vinho vendia-se normalmente por 2$00 um litro de leite 1$00, um pão 1$10, uma carteira com 24 cigarros triunfo 1$10, enquanto se vendia a pedra para um forno e uma chaminé por 260$00 (duzentos e sessenta escudos)
Era ainda, um serviço de aproveitamento dos tempos perdidos com a chuva ou mau tempo, pois era um serviço que se podia fazer com essas situações, para mal dos meus pecados e dos meus irmãos mais velhos, que ao contrário dos outros rapazes que jogavam à bola, ao pião, à pata, às cartas, ao sete e meio, ao macaco na taberna do Tio António Medeiros, etc., “era na pedreira o nosso lazer”.
Havia trabalho para todos os dias e para todo o ano, à excepção dos Domingos e dias Santos, e, quando escasseava um pouco, lá iam os meus irmãos mais velhos Mário e o Celestino, trabalhar uns tempos na abertura e alargamento de estradas que se executavam naquele tempo na ilha, sempre era mais aquele dinheirinho que entrava no cofre geral e único, que sempre existiu lá em casa.

A TENDA DO SAPATEIRO

A tenda de sapateiro que conheci em São Caetano, era do simpático velhinho, “mestre Manuel Gravito”.
Era na sua sala de fora que tinha montada a tenda e que recebia os seus clientes.
Na mesma sala, funcionava também uma barbearia, pertencente ao genro Manuel Nunes da Silva.

OS DIAS DE ÓCIO

Os Domingos e dias Santos, eram os dias em que se descansava, depois de tratar dos animais, vacas, cabras, etc., salvo na época das vindimas que até nesses dias se vindimava, pois havia sempre o receio que pudesse chover e estragar as uvas.
Os mais velhos, juntava-se no lugar da empena da cooperativa, em cima do alto, conversando, fazendo e fumando uns cigarros. Sentavam-se numa bancada de pedra que ali existia, e outros no balcão do Tio José Leal, conforme os ventos sopravam. Uns conversavam, outros escutavam cortando pauzinhos com a sua afiada navalha, enquanto outros picavam (cortavam) o tabaco para fazer o seu cigarro com o tal tabaco da horta. Haviam também os que só tinham vontade de fumar e, para não dar muito nas vistas, pediam uma coisa a um, outra a outro, até completar o cigarro.
Era comentado com certa graça o caso dum indivíduo bem conhecido lá no meio que, picava o seu tabaco quando o tinha, e pedia ao amigo do lado o papel para o embrulhar, e, logo de seguida, voltava: “dá-me mais um papel que eu piquei tabaco demais”. Sempre aproveitava mais aquele papelinho. Um livro de papel da marca “Touro” tinha 100 folhas e custava $80 (oitenta centavos). Os rapazes jogavam ao peão, à pata, à barra, etc. e ao sete e meio a cigarros, etc.

A MINHA ESCOLA PRIMÁRIA

A minha velha escola já está há muitos anos abandonada.
Aos sete anos entrei para a escola primária – no ano de 1947 – só se podia matricular quem tivesse sete anos feitos a sete de Outubro de cada ano, data em que abria a escola. Eu fazia os sete anos a 13 de Dezembro, pelo que, quando entrei, tinha quase oito anos.
Foi minha primeira professora a Senhora Dona Guida Fialho, ela também no seu primeiro ano de ensino com os seus dezoito anos. Senhora muito bonita, meiga e de muito bom feitio. Nos anos seguintes, a Senhora professora Dona Rosa do Coração de Maria Alves, senhora madura, exigente disciplinadora e muitíssimo briosa na sua profissão.
A minha escola era mista, com cerca de sessenta alunos de ambos os sexos. Era pequenina, mas ali se construíram grandes alicerces humanos, tanto na formação, como também na educação.
No meu tempo, na escola não se aprendia só a ler e escrever, mas também, moral, religião e bons costumes.
Aos Sábados havia canto coral, educação cívica, jogos e brincadeiras. Aprendia-se a brincar e a cantar, nomeadamente o Hino Nacional, o Hino da Escola, etc.
Parece-me estar a ouvir a minha saudosa professora D. Rosa Alves a ensinar e cantar connosco o hino da Escola que era assim:

A nossa escola é um hino redentor
Onde a nossa alma vem buscar alento
E a meiga voz do nosso professor
Acompanhada de Juvenal amor
É cá p´ra nós carícia e sentimento

Abençoada Escola
Que a todos acarinha
Que anima e que consola
E a Deus nos encaminha

É fogo que acrisola
Nossa alma pequenina
Viva a risonha Escola
Da aldeia da Prainha.

Que saudades daqueles santos tempos, em que, nós os rapazes, jogava-mos ao vintém, com dinheiro de outro tempo (monarquia), ao peão, à pata, à barra, etc. enquanto as raparigas faziam roda e cantavam: O Jardim da Celeste , etc.
Tenho também as melhores recordações dos livros que utilizei e que ainda hoje conservo, nos quais aprendi muitas coisas que me ajudaram a gerir a minha vida.
Aos onze anos, completei o ensino primário, com distinção.
Da minha escola, tenho as melhores recordações. Das professoras amigas, dos colegas e amigos que durante muitos anos perdi de vista e que agora, os anos que nos caíram em cima nos trazem constantemente à memória, dos jogos e brincadeiras, e especialmente de certas cenas que hoje me parecem um sonho. Também recordo, aquele pedacinho de lápis de ardósia que, quando nova e inteira, com os seus cerca de 12 centímetros, havia custado $10 (dez centavos), mas que, era preciso aproveitar enquanto escrevesse. Por fim, quando já não se conseguia pegar bem com os dedos, metia-se num pequeno e fino canudo de cana de bambu ou até de hortênsia.
Não podendo continuar os estudos, como era meu desejo, o que era quase impossível naqueles tempos para uma família de fracos recursos financeiros numa freguesia rural da Ilha do Pico, lá continuei a trabalhar nos campos junto com meu pai e irmãos. Nesta altura já possuíamos terrenos por todos os cantos da freguesia. Terras de pão, de vinhas, de pastagem, de lenha para queimar e monda para os estrumes dos campos, etc., não faltavam.

CURTUME DE PELES

OS CURTIDORES

Era em São Caetano que havia o maior número de curtidores de peles. Lá conheci pelo menos dez dessas indústrias familiares a funcionar ao mesmo tempo.
Estes transformavam as peles em sola e carneira. A sola era a pele dos animais maiores, bois e vacas e a carneira dos bezerros e cabras que, depois de muito bem trabalhadas eram depositadas nuns poços com água e cal para lhe retirar o cabelo. Depois eram passadas a cutelo para descarnar e tirar impurezas. Depois eram novamente depositadas no mar amarradas com correntes durante vários dias.
Entretanto, na falta de outras drogas próprias para a curtimenta e ou de dinheiro, os curtidores arrancavam faias donde lhe extraiam a casca das raízes, que depois de muito bem batida, era colocada juntamente com as peles a curtir num poço. A seu tempo era pregada com pregos numas tábuas e postas a secar ao sol e, depois de bem secas, eram cortadas às tiras e vendidas.
Com a sola, faziam-se as aparcas, com a carneira, faziam-se as correias, para atar quer as botas, quer as aparcas e ainda as luvas para mondar as mondas agrestes, as silvas, para curtir em estrume no curral do porco e que seria utilizado especialmente nas sementeiras e culturas diversas. Era com o estrume dos animais que se estrumavam as terras, hoje a chamada agricultura biológica. No tempo, não existiam adubos.
Quase todos os curtidores, iam vender a maior parte da sua sola, cortada às tiras e metidas num saco às costas, para as outras Freguesias. Era tal palmilhar quilómetros, porta-a-porta, freguesias fora.
Às alparcas feitas de sola e com umas arreatas de carneira, eram pregados uns pedaços de borracha, extraída normalmente do meio dos pneus deixados de ser usados pelos automóveis, borracha essa que não era barata nem fácil de encontrar, pois os automóveis eram muito poucos, relativamente à procura.
Mais tarde, a melhor borracha, vinha da base aérea das Lajes da Ilha Terceira, proveniente dos pneus dos aviões, essa mais larga e de muito melhor qualidade, e por conseguinte maior duração.
Havia pobreza, mas hoje em dia, apesar da muita abundância, em certas casas, penso que não há a alegria que, apesar de tudo, reinava naqueles tempos. E como diz o povo, ainda a procissão vai no adro.
Mesmo assim, já havia quem dissesse: “vale tudo menos tirar olhos”, hoje, começa-se por tirar os olhos, pois já facilita as coisas.
No meu livro de leitura da 4ª. Classe do ensino primário, como se chamava, li no rodapé de um trecho, um pensamento salvo erro de Eça de Queirós, que sempre me norteou por toda a minha vida:

“A nossa melhor recompensa... É a paz da consciência”

O PASTOREIO

Era agradável levantar cedo, nos dias em que, por qualquer razão íamos para os matos, e acompanhar os pastores, madrugada cedo, rumo às vacas.
Lá em casa, era o meu irmão Celestino, que normalmente se ocupava das vacas, isto no que concerne especialmente à sua ordenha. Por vezes, consoante a distância a que as vacas se encontravam, era preciso sair de casa cerca das duas horas e meia três da manhã, para percorrer oito a dez quilómetros para cada lado, por veredas e atalhos com muito mau piso, saltando portais com as pesadas canecas de madeira de cedro atrás das costas penduradas numa foice, onde se cruzava o bordão – cajado. Havia que chegar muito cedo às vacas, caso contrário seria difícil ordenhá-las. As moscas eram tantas, que o animal não parava com os pés e com o rabo, tentando sacudir as moscas, mas muitas vezes, lá se ia também a caneca e por conseguinte o leite
Parece-me estar a ver o Tio João Jacinta, com uma pequena caneca de madeira de um litro – à qual eu achava muita graça - pendurada na foice juntamente com um molhinho de milho basto ou espiga de milho, a caminho da pastagem, (do mato) percorrendo os tais quatro a cinco quilómetros para cada lado, ordenhar a sua cabra. Não tenho a certeza se no regresso a caneca de um litro vinha cheia ou não. Contudo, havia também alegria e outras coisas que recordo com muitas saudades. Parece-me estar também a ouvir o Jacinto Pereira Evangelho, já falecido, a tocar o seu búzio, todos os dias, manhã cedo, quando chegava junto das vacas fora da encumiada.
Tocava-o tão bem que parecia um rouxinol. Apesar da muita distância, ouvia-se em toda a freguesia, no silêncio das manhãs do verão. O mesmo acontecia com o António Cambóio, quando chegava ao cabecinho, (pastagem alta) onde tinha também o seu búzio escondido debaixo dumas leivas.

PASSEIO AO BALDIO - O Ajuntamento do Gado

O ajuntamento do gado bovino na serra, era no dia 22 de Setembro de cada ano – o dia seguinte à festa de São Mateus, na freguesia do mesmo nome. Nas Juntas de Freguesia, havia o arrolamento para pôr o gado ovino (ovelhas e carneiros) a pastar nos baldios sob a administração da Câmara Municipal, onde era efectuado um registo próprio do sinal de cada pastor, com as suas marcas próprias no gado. As marcas eram do género: “ ovelha branca com a orelha direita traçada na ponta e duas mossas; orelha esquerda, rachada na parte de cima e um furo a meio “
“ Um carneiro preto, com a orelha direita rachada e dois furos na esquerda “ etc. etc.
Madrugada muito cedo pastores e curiosos, largavam das várias freguesias em romaria a pé com seus farnéis no sarrão, um grande corno de boi cheio de vinho para a viagem amarrado com um cordão nas armelas colocadas nos dois extremos e pendurado ao ombro, e lá se iam encontrar não lugar da serra da Madalena, donde partiam todos juntos rumo aos baldios juntar o gado com a ajuda dos cães. À medida que iam apanhando o gado, iam-no concentrando no curral da Câmara Municipal onde eram depois separados pelas respectivas freguesias. Depois do ajuntamento, comiam e bebiam provando o vinho “dos cornos uns dos outros”, e lá seguiam a pé, conduzindo o gado, rumo às suas freguesias.

A SEPARAÇÃO DO GADO

No lugar do costume, já na freguesia, havia sempre muita gente à espera de ver a chegada do gado. Juntavam-se as pessoas para ver aquela festa e os donos do gado a escolher novamente os seus animais, pelas marcas. Haviam pessoas que só tinham uma ou duas ovelhas, e pediam aos amigos que lhas procurassem e trouxessem, juntamente com as deles.
Nos dias seguintes, procedia-se à tosquia das ovelhas. Eram tosquiadas duas vezes por ano. Em Março, antes de irem para o baldio e em Setembro, após a chegada. Tosquiadas as ovelhas era colocadas nas vinhas depois de vindimadas, sempre havia por ali umas ervas ainda verdes e outras já secas com que elas se entretinham. Os maiores pastores, vendiam então a sua lã, que era uma das fontes de receita daquelas famílias. Lembro-me com muitas saudades, como se fosse hoje, da minha mãe me dizer: “Vai a casa do Sr. João Correia, e diz à Tia Rosa Pintassilga – sogra dele – que venda duas libras de lã, que a mãe depois passa lá a pagar”.
Estou como quem está vendo a Tia Rosa com os seus oitenta e muitos anos, à procura da balança e dos pesos. Era uma balança de dois braços com um ponteiro a meio, cujo equilíbrio se verificava na peça que também servia de suporte, presa na mão. Aos pesos, eu achava muita graça; eram pedrinhas lisas do calhau, muito bem aferidas, e com um orifício onde se prendia a ponta do gancho de um dos lados da balança, brilhantes da gordura das ovelhas que a lã continha. Havia pesos de libra e meia libra. A lã era utilizada na nossa casa, como aliás nas dos demais, especialmente para, depois de muito bem lavada, cardada e fiada, neste caso pela minha mãe, fazer as meias para os homens, sempre protegia e aquecia os pés dentro dumas aparcas feitas com uma tira de pele de vaca curtida nos curtidores artesanais. Mas, meias de lã, só para os mais velhos e ou mais abastados.

FESTA DO NATAL

Aproximava-se o Natal. Vinham aí as novenas, não se podia faltar. Além da componente religiosa, serviam não só de protesto para sair de casa à noite, o que não era autorizado naquela época, mas também para encontrar os amigos e ver as raparigas.
Cerca de três semanas antes do Natal, as pessoas, em quase todas as casas, punham o trigo em pequenos pratinhos com água, para abrolhar e estar crescido e bem verdinho para ornamentar os altarinhos do Menino Jesus e os presépios. A Senhora Beliza Nunes, era quem fazia o altarinho mais bonito e mais concorrido. Era ali que eu ia mais a minha mãe durante os quinze dias de novena, rezar e cantar ao Menino Jesus.
Parece-me estar a ver e ouvir a minha Avó Margarida Marques, normalmente a orientadora do terço e outras pessoas daquele tempo, que recordo com muita saudade.
Haviam os chamados ranchos do Natal, compostos pelos melhores instrumentistas de cordas. A guitarra, normalmente bem tocada pelo Manuel Correia da Silva, o bandolim, pelo meu tio Deodato Marques, o violino, pelo António da Vigia, o violão pelo Prudêncio, a viola, o ferrinho e as melhores vozes dos jovens e adultos que cantavam os mais lindos versos alusivos à quadra Natalícia. Nestes ranchos, haviam normalmente duas pessoas que cantavam à frente os versos, e um grande coro que cantava atrás, uns e outros a duas vozes. Era hábito, os donos da casa brindarem os intervenientes no rancho quando acabavam de cantar, com aguardente, angélica, aniz ou traçado, normalmente bebidas caseiras, que quase todos tinham, acompanhadas por uns figos passados e ou umas bolachinhas. Atrás destes ranchinhos, juntavam-se muitas pessoas, nomeadamente os mais novos, para os ir ouvindo cantar pelas casas que normalmente os recebiam e onde se juntavam também muitas pessoas durante o serão. Era também hábito, as pessoas visitarem os presépios e os altarinhos na quadra do Natal, para ver qual era o mais bonito. Quando o rancho era considerado mesmo bom, visitava também as freguesias vizinhas.
No dia de Natal, à tarde, havia a procissão do Menino Jesus, com as crianças levando as suas ofertas. Um levava um galo, outro uma galinha, outro uma dúzia de ovos, uma perna de massa sovada, uma cesta de laranjas, uns biscoitos, uma garrafa de aguardente, um garrafão de vinho, um cesto de asa de batatas, etc. etc.
Recolhia a procissão e principiava o arraial, com música de filarmónica, enquanto se procediam às arrematações das ofertas. Os mais afoitos lá iam picando e cobrindo o último lanço. Era uma forma de ajudar a receita da igreja e sempre se levava qualquer coisa para casa. Afinal, eram dias de festa. Alguns aproveitavam também a oportunidade para exibir as suas posses.
Na semana seguinte, era o Fim do Ano. Ano Novo e novamente os seus “ranchinhos”, agora com novos versos desejando um FELIZ ANO NOVO. Contavam-se os dias com esperança e alegria.
Normalmente, para as coisas da igreja, não faltava tempo. Minha mãe, tinha sempre tudo controlado, para que, ninguém – muito especialmente ela – faltasse a novenas ou qualquer devoção que houvesse na igreja da freguesia.
Havia uma época do ano que me impunha muito respeito. Era o mês de Novembro o chamado mês das almas.
Nos altares laterais da igreja de São Caetano, eram colocados quadros do purgatório e até do inferno, com figuras tão feias que não lembrava ninguém. Era o Diabo com cornos enormes, dentes a condizer, garras de leão, todas num ar de grande sofrimento, para lembrar o Inferno. Para o Purgatório, eram as alminhas também em sofrimento espiando as suas penas.
Havia missa pelas alminhas do purgatório às cinco horas da manhã e novamente devoção às sete da noite.
Os sinos, dobravam como se tivessem anunciando a morte de alguém na freguesia ou por altura dos funerais.
Muitas das pessoas, como eu também, sentiam-se aterrorizadas. Só viam e sentiam almas por todo o lado naquele mês. Nós, os mais novos, tínhamos medo de sair de casa à noite ou de manhã cedo, especialmente os que ia às pastagens altas ordenhar as vacas, que saíam de casa madrugada cedo. Parece-me estar a ouvir a minha mãe que vinha sempre à porta à saída e, a chorar recomendar sempre que fossemos rezando para ajudar a passar o caminho.

FESTA DO SENHOR BOM JESUS

A seguir, vem a grande festa do Senhor Bom Jesus Milagroso, que se venera no Santuário da vizinha freguesia de São Mateus, aos seis dias de Agosto de cada ano.
Semanas antes, preparam-se todos os caminhos, pintam-se as casas, enfeitam-se as ruas, colocam-se centenas de balões de papel de várias cores com uma vela de cera no seu interior onde irá funcionar o arraial – normalmente até ao lugar do Passo. Quase toda a gente recebia romeiros doutras paragens. Na véspera, o conhecido dia do “fogo preso“, principiava o arraial.
Tocavam as filarmónicas constantemente, os amigos encontravam-se; uns passeavam no arraial outros, os que podiam, comiam e bebiam nas tascas os mais saborosos petiscos e mariscos acompanhados do bom vinho do Pico, outros ainda iam dar a sua pancada na Margarida.
Margarida era uma mesa redonda com pequenos pregos à sua volta, por onde passava a palheta duma roleta, onde se encontravam alguns brindes, normalmente chocolates, uns maiores, outros mais pequenos, e, onde a palheta parasse, era o prémio que se havia ganho. Cada pancada na Margarida custava um escudo. Ao lado, o José do Chico embalava com o pé sobre uma roda o seu “Bismark” – um carrinho feito em madeira, com três rodas, em forma de navio, pintado de branco – enquanto ia anunciando os seus saborosos sorvetes: “ Olha o belo sorvete ananás que alegra a rapariga, satisfaz o rapaz e refreca as ideias. Custa apenas cinquenta centavos ($50) e cura a dor do apêndice, quando no hospital custa 1.200$00 (um conto e duzentos)… ICE CREAM… De facto eram saborosos, e para quem só tinha aquela oportunidade uma vez por ano, havia que aproveitar, havendo os $50, claro. Mais além via-se uma barraca com alumínios, latas, funis, candeeiros panas de todos os tamanhos, etc. etc. onde se podia comprar um envelope fechado contendo um número que indicaria a nossa sorte pela quantia de 2$50 (dois escudos e cinquenta centavos).
Ao lado, estava a barraca das latas. Eram cinco latas sobre uma tábua, colocadas a uma certa distância. Jogar três bolas de trapos, custavam também os mesmos 2$50, que se atiravam às latas. Quem conseguisse atirá-las todas ao chão duma só vez, ganhava uma cerveja que custava 3$50. Veja-se o lucro, e quando calhava. Normalmente, saia dali cada uma cara triste que nem me quero lembrar. Debaixo dos plátanos, à sombrinha, lá estavam os vendedores de fruta da Criação Velha com os seus cestos de vimes brancos cheios de uvas – preta e branca – figos, maçãs, peras, maracujás, etc. cujo cheiro ia longe e fazia crescer água na boca. Para muitos… “ estava verde “. Pelo arraial, passeavam-se as pessoas, entre as quais, algumas mais carismáticas, e que os rapazes de quem o diabo fugiu, gostavam de encontrar. Era o tio José do Salão, pequenino, e de pescoço franzido a quem os rapazes achavam graça, pois ele até dizia que empalhava garras e garrafões com vimes, era o João das muletas, era o José Moreia, o Samacaio, etc. Por outro lado eram da praxe, as cantigas ao desafio. Todos os anos, lá apareciam, o Tio Brasil, o Funchinha e outros. Em pleno arraial, e a pedido das pessoas, lá cantavam ao desafio com as mais afinadas vozes as picantes quadras. Eram pessoas dotadas dum tal dote, que improvisavam uma quadra a pedido dos interessados, dum momento para o outro. Consta-se que um desses cantadores, o Funchinha, que mais tarde terá falecido de cancro na próstata, no Hospital da Horta, já às portas da morte, ao ser visitado pelo seu médico, o Dr. Campos, este, na expectativa de o animar, pediu-lhe para que cantasse uma cantiga. O Funchinha, que já mal lhe saía a voz, reconhecendo a sua situação, acedeu, e lá vai:

Se eu não tivesse dores
Nem sofresse das urinas
Cagava para os Doutores
E p’rás suas medicinas

Do Faial, vinham dois ou três Polícias, mais que suficiente para resolver quaisquer mal entendidos que eventualmente pudessem acontecer.
Animador que não podia faltar na festa, era o José Fonseca, lá de São Caetano. Levadinho do diabo, pegava com todos, até com o pobre do Tio José do Salão. Um dia, chegou-lhe a brasa dum cigarro ao pescoço. Metia dó ver o pobre velhinho a gritar e a correr sem poder e sem saber o que fazer nem onde se devia meter. Abaixo do adro, nas escadarias de pedra, eram montadas as tribunas, todas seguidas, onde tocavam as filarmónicas. Quando não tocavam, as pessoas iam lá para cima, pois era lugar vistoso onde se descobria a maior área do arraial, e um eventual amigo ou amigo que já não se tinha visto há anos.
Por debaixo do mesmo, andavam os rapazes a brincar, normalmente com as canas dos foguetes.
Uns esforgulhavam para cima, outros para baixo a ver quem atingia primeiro o outro, e outros ainda, os mais maldosos punham-se a vigiar pelas frestas das tábuas, quaisquer distracções das pessoas que estavam na parte de cima. Era a força do verão, e daí o muito calor. Estou a ver o José Fonseca, a enfiar a sua cana de foguete, até onde pôde, como quem fisga um caranguejo.
Isto prolongava-se pela noite dentro até depois da meia-noite para alguns e até de manhã para outros, alguns curtindo grandes bebedeir. No dia do fogo, a véspera da festa, nas traseiras da igreja, procedia-se à arrematação do gado – bezerras, vacas e bois – proveniente das muitas promessas feitas ao Senhor Bom Jesus por algumas pessoas em horas de aflição e que revertiam a favor da paróquia.
Enquanto isto, alguns dos balões de papel, quando a respectiva vela chegava ao fim, lá se iam incendiando ao que o pessoal fazia um grande alarido.
No dia seguinte, 6 de Agosto, a festa continuava. À tarde, cerca das dezanove horas, saia a procissão com a imagem do Senhor Bom Jesus, prosseguida dos “anjinhos” e outras pessoas, cumprindo as suas promessas com grandes tochas de cera, e até algumas de joelhos no chão, acompanhadas de familiares e de muitas pessoas, a toque das muitas filarmónicas, distribuídas pela mesma. Normalmente, e apesar da grande extensão do giro da procissão, antes de acabar de sair, já entrava o guião da frente e as primeiras pessoas.
Depois da chegada da imagem, esta era voltada para o público e, em jeito de despedida, era tocado o seu Hino, pela totalidade das filarmónicas, normalmente sob a regência do professor Sr. José Inácio Garcia de Lemos, músico e dirigente destas festas. Entretanto, as pessoas continuavam a pagar as suas promessas, quer entregando as suas esmolas em dinheiro aos pés da imagem e recebendo uma estampa e ou medalha do Senhor, quer dando voltas à igreja de joelhos, algumas já com eles em sangue, amparadas por familiares.
No interior da igreja, os padres pregavam sermões, a pedido das pessoas, cumprindo também as suas promessas. À noite, prosseguia o arraial, enquanto alguns, os de mais longe iam rumando a suas casas nomeadamente os do Faial, que iam procurando os autocarros, rumo à Madalena, onde apanhavam as lanchas para a Horta.
Assim terminava a festa. Cada um para suas casas. Havia que esperar mais um ano por igual dia.

FESTAS DO ESPÉRITO SANTO

Nos Açores, predominava a religião católica.
No início do Verão, faziam-se – e ainda hoje se fazem - por toda a Região dos Açores, as festas em louvor do Divino Espírito Santo.
Em São Caetano, a juventude, esperava pela terça-feira do Espírito Santo, dia das bonitas rosquilhas de massa sovada, na altura o maior império da Ilha do Pico. Era também pelo Espírito Santo, que as moças deitavam os seus vestidos novos, e os rapazes, quando calhava o seu fato novo ou sapatos. Uma semana antes, preparava-se a festa. Colocavam-se as bandeiras desde o adro da Igreja até ao cimo do alto, pelos dois lados do caminho. Armava-se a tribuna onde viriam tocar lindas modas, as filarmónicas das Setes Cidades, Madalena e a das Lajes do Pico, e cobriam-se de verduras. Armavam-se as barracas, onde se haviam de vender os bons petiscos e mariscos – eram as favas cozidas com aquele famoso molho picante, os torresmos e costeletas de porco, lapas, caranguejos, etc., acompanhados do bom vinho do Pico.

A PROCISSÃO

À tarde, saía a procissão a fazer a recolha das rosquilhas.
As pessoas que “davam pão” (as rosquilhas), colocavam os açafates de vimes brancos bem trabalhados, cobertos com lindas toalhas de renda e ou linho bordado, feita pelas mãos das mulheres da freguesia, com normalmente trinta e seis lindas rosquilhas de massa sovada com cerca de um quilo cada. Ao portão, aguardavam a passagem da procissão, onde as mulheres, transportando os ditos açafates à cabeça, eram acompanhadas do marido (irmão) com a sua opa vermelha, vara vermelha na mão e fita da irmandade no lado esquerdo da lapela do casaco, rumo ao adro da Igreja. À chegada, no adro, eram colocados os açafates com as rosquilhas em duas alas, a partir da porta da copeira – Império - ou casa do Senhor Espírito Santo, onde seriam benzidas. Depois da bênção do pão, dada pelo padre da freguesia a toque dos foliões, principiavam a ser retiradas pelos irmãos, dos açafates em igual número, e enviadas em varas vermelhas, que depois de fechado o corte iam sendo distribuídas por todos os presentes, menos aos irmãos que não podiam receber para que não faltassem rosquilhas no império, pois isso seria uma grande vergonha para a freguesia. Para estes, só ficavam as que restassem nos açafates.
Entretanto, as filarmónicas tocavam para animar a festa, uma de cada vez, enquanto os músicos das outras, passeavam pelo arraial que ajudavam a abrilhantar com as suas lindas fardas brancas, alguns deles fazendo até grandes conquistas. Acabada a distribuição das rosquilhas, mais um copo e, cada um para suas casas esperar a próxima Terça-Feira do ano seguinte.

A FESTA DOS CORNOS

No dia 25 de Abril – dia de cornos – à tarde, fazia-se a festa dos cornos, com procissão e sermão dos cornos.
A procissão, saía normalmente do lugar do Caminho de Cima, sob a orientação do António Cabral, grande entusiasta desta festa, auxiliado pelo seu braço direito, o Manuel Branquinho, o Horácio e muitos mais. De guiões erguidos com lindas aparelhas de cornos ali desenhadas, uma coroa em arco de chapa daquela que servia para cintar as barricas do vinho, e com um grande corno preso a meio e ao alto, entre um quadrado de varas seguradas pelos “Irmãos”, uma lata com brasas contendo cornos a arder lá dentro servindo de incenso, lá vinham até à Prainha, tocando búzios e campainhas e apupando aos irmãos que encontravam pelo caminho, obrigando-os a ajoelhar, beijar o corno, coroar e por vezes, a acompanhar o cortejo. Alguns, os mais desconfiados, davam o cavaco; zangavam-se e outros, perto daquelas horas, saíam de casa; fugiam por veredas e canadas onde se escondiam entre as faias. Desgraçado do que desse o cavaco, eles, os da irmandade nunca mais o largavam. Assim se percorriam as principais ruas e canadas da freguesia, procurando os irmãos para coroar. À tardinha, a festa encerrava com o tradicional sermão dos cornos. O sermão, normalmente andava à volta do corno. Haviam cornos das mais variadas bitolas. Uns eram elogiados porque eram mansos, outros criticados porque eram ariscos, zangavam-se e até fugiam, e ainda havia os que investiam mesmo a sério.
Meu pai, era dos melhores oradores para pregar o sermão. Recordo-me de algumas quadras que faziam parte do sermão:

Este dia de São Marcos
Tem que ter o seu sermão
Que este dia para nós
É dia de grande função.

Não há maior irmandade
Que a do corno retorcido
Que p’ra falar a verdade
Enfeita tanto marido

Todo o homem que é casado
E vive neste desterro
De cornos anda pesado
Sem ser bode nem bezerro.
Se alguém o corno apanhar
Meta a viola no saco
É ver, ouvir e calar
E nunca dar ao cavaco.

Podemos assegurar
Bem nos termos desta lei
Que ninguém pode afirmar
Desta água não beberei.

Os cornos que estamos vendo
É uma praga geral
Que cada um vai roendo
Conforme sente o seu mal.

Com o final do sermão, terminava também a festa. Uns contentes outros tristes, com sorrisos amarelos, cada um para suas casas. Alguns iam ajustar contas com a companheira, que todo o dia esconjurou quem tivera tal ideia de, por aquele processo, festejar aquele dia.

AS PROFESSIAS

Na minha infância e adolescência, ouviam-se as pessoas mais antigas contar muitas histórias das Profecias.
Uns riam-se, outros acreditavam, outros encolhiam os ombros e ainda outros diziam que nem crer nem abusar.
Se não é apenas confusão minha, verificam-se hoje coisas que se assemelham com certos ditos das pessoas mais antigas daqueles tempos.
Uma das que sempre tive presente, era contada com muita graça pelo Jaime Marques, primo da minha mãe, que parafraseando o velho Tio Silveira da Terra do Pão, pessoa inteligente lá da Freguesia, e que lia muitas dessas professias, dizia:
“Há-de vir uma época, em que “os trampas hão-de se erguer” e é que hão-de mandar.
E hoje, acrescenta o Jaime: “e eles estão aí”, já se ergueram.

COISAS DO ARCO DA VELHA

A carne de vaca, era de categoria única. Um quilo de carne com osso, custava 5$00 (cinco escudos) mas, o António Cabral – o marchante - não arriscava a abater uma vaca, pelas festas do Senhor Espírito Santo, altura em que muita gente sempre comprava o seu bocadinho de carne de vaca, sem primeiro correr de porta em porta, as casas daqueles que lhe pareciam potenciais clientes, fazendo o seu rol.
Mesmo assim, uma vaca de cento e tal, duzentos quilos, dava e por vezes sobrava.
Já na altura, meu pai era proprietário de três pequenas quintas de laranjeiras. Uma que comprou ao Tirano, que era a melhor, onde as laranjas era muito doces, no sitio do Marrocão e outras duas que ele mesmo plantou. A segunda, também no Marrocão, onde haviam as muito saborosas laranjas brancas, e a do curral das galinhas, que ficava perto de casa, junto ao tanque do vizinho Fontes. Eu e os meus irmãos, éramos constantemente assediados pelos amigos: - “Vamos à vossa quinta”. Lá íamos. Era gosto vê-los a comer laranjas.Graças aos meus pais, nunca conheci certas dificuldades que via noutras casas. Trabalho nunca faltou, é certo, mas também uma certa abundância na mesa, na adega e até nas terras onde geralmente havia quase sempre fruta da época.
Desde muito novos, os filhos deste casal entravam num ambiente de trabalho, no amanho das terras – pior ainda para os meus irmãos mais velhos – e eu não fugi à regra, principiando desde muito novo (6 anos) a levar o comer aos irmãos mais velhos e ao pai, às terras. Tenho imensas saudades daqueles tempos em que, apesar de certas faltas, havia alegria, as pessoas normalmente eram sinceras, havia palavra de honra, as pessoas respeitavam-se, as crianças tratavam os mais velhos por Tio, ou senhor e, ao passarem por eles cumprimentavam e tiravam-lhes o seu chapéu: Bom dia, Boa Tarde, Boa Noite, mais que não fosse. Hoje... está mau de mais para o meu gosto, e como diz o povo, a procissão ainda vai no adro.

O MÉDICO DE SÃO CAETANO

O SENHOR CORREIA

Manuel Correia da Silva, natural da Ilha de São Miguel, veio para São Caetano por casamento com a senhora Anastácia Silva que lá residia, na companhia do Pároco da freguesia, o Padre João Goulart, seu tio e padrinho. Ele era o Regedor e tinha a maior loja da freguesia – a Cooperativa - mercearia, líquidos, fazendas, vidros, etc., o correio e mais tarde o telefone público. Pessoa muito bondosa, merecedor de todo o respeito e consideração, a quem quase todos deviam muitíssimos favores e atenções pelos bons serviços que lhes prestava. Ele, com os fracos recursos de que dispunha, fazia muitíssimas operações, algumas com certa delicadeza, quase milagres.
Eram dedos, braços e pernas cortados com foices e machados, eram rapazes com as cabeças rachadas, eram as mulheres com os peitos infectados, nomeadamente por altura dos partos, a quem os abria, era uma simples dor de cabeça ou de dentes, a quem aconselhava e vendia o respectivo comprimido, etc. etc. Fazia os curativos a quantos lá aparecessem, ali no quarto de dentro, ou do cofre, como era conhecido, onde havia um velho banco corrido de madeira e um balde em zinco com asa de verga, para pôr os pensos usados e aparar o pingo da água oxigenada e da tintura e onde colocava o penso substituído, etc. Utilizava os seus produtos, as suas ferramentas, desinfectantes, agrafos, etc., sem cobrar um cêntimo a ninguém. Largava de imediato tudo o que estava fazendo, sempre que alguém precisasse dos seus serviços.
Alguns, como forma de reconhecimento, lá o iam ajudar a vindimar ou coisa semelhante, outros, por atenção e como forma de reconhecimento, faziam as suas compras lá na sua loja. Havia apenas um médico em cada sede de Concelho, o Delegado de Saúde, porque era obrigatório, que dava e sobrava. Não havia comparticipação na assistência médica nem nos medicamentosa.
Era praticamente a natureza a gerir a saúde das pessoas, para além duns chás caseiros feitos com ervas, e a preciosa ajuda do Sr. Correia, a mais valia para toda aquela gente. O Picaroto, normalmente era um homem forte. Diziam os de outras ilhas em ar de graça, que no Pico, quando nascia uma criança, era atirada aos pés da cama, normalmente de ferro. Se resistia, era boa para criar; se morria, não era boa para criar. Ao médico, só se ia quando a coisa era já muito grave. Morria muita gente do “mal da Avé-Maria”, a actual trombose e ou enfarte.
Recordo-me aí por altura dos meus sete anos, de, um filho duma amiga de infância da minha mãe vir a nossa casa e, dirigindo-se à minha mãe disse: Ó senhora Isabel: minha mãe manda dizer, se a senhora tem umas cuecas do Mário que possa emprestar para ir com o nosso Manuel ao Sr. Doutor. Ele está muito doente? Como se vê, umas simples cuecas, não eram para todos, naquela época.

CENAS DA ÉPOCA

A CASA DE PALHA

Contava meu pai e os mais antigos que a pobreza era tanta em certas casas, que o avô da rapariga atrás referida e que tinha uma família muito numerosa, vivia numa casa de palha – coberta com palha de trigo – com apenas uma porta para a empena. Era tão “grande” a casa (!!!), que aquele, aproveitava em noites de bom tempo, para esticar as pernas, pela porta fora.
Um filho desse senhor, que eu bem conheci, o pai da rapariga acima referida, também pai de dez filhos e que viviam exclusivamente do mar, tal era a pobreza, que levava para comer durante o dia de pesca, um quarto de bolo – um quarto de bolo, era mesmo a quarta parte dum bolo espalmado feito com farinha de milho escaldada e amassada com água a ferver e um pouco de sal, e, normalmente cozido num tijolo de chapa de ferro sobre o lume feito com lenha, com aproximadamente, 1 a 1,5 centímetros de espessura e um diâmetro entre 20 a 30 centímetros.
Às tantas do dia, partia um pequeno pedacinho e dava a cada um dos dois filhos que o acompanhavam, e, se caía algum farelinho, juntava-o e metia-o na sua boca, era esse o quinhão dele. Havia também uma barça feita com aduelas de madeira de cedro, feita nos marceneiros, com água, que, antes do sol a aquecer matava a sede e sempre ia dando para atenuar algumas agastúrias do estômago. Não eram poucas as pessoas que, por necessidade e falta de dinheiro, iam ao porto, “à costa” como diziam, esperar os barcos que viriam da pesca local, aí por cerca do meio-dia, para ajudá-los a varar, “para ver se lhe davam uma varagem” – varagem, como lhe chamavam era um brinde, que oferecia o dono ou mestre da embarcação a quem os ajudavam a varar – neste caso um pequeno peixe que, com umas folhas de salsa, alho, sal e água, sempre faziam um simples caldo que enganava um pedaço de bolo ou umas batatas. Eram tantas as dificuldades, que, no Inverno, com ventos fortes do quadrante sul, que nesta freguesia, empurrava para a terra, viam-se alguns mirolhos a vigiar se o mar trazia qualquer coisa atirada ao mar de bordo de algum navio, uma garrafa, um garrafão, uma lata, um fardo de borracha, um pau de madeira de África, etc. Quando avistavam qualquer coisa, mesmo que uma simples garrafa, que fazia muito jeito, despiam-se e atiravam-se à água, estivesse ou não o mar bravo, por vezes pondo a própria vida em risco, antes que o objecto batesse nas pedras e se partisse.Meu pai, aquele que não queria que nada nos faltasse para comer, na medida das suas possibilidades relativas ao tempo, além de muitas terras, tinha também a sua cédula marítima.
À medida que a família foi crescendo e o trabalho aumentava, não havia tempo para ele ir à pesca. Depositou então a sua cédula marítima na Delegação Marítima das Lajes do Pico, temporariamente, pois assim não havia a obrigação de pagar a assinatura anual, que eram 5$00 (cinco escudos), hoje 2,5 cêntimos. Nessa altura, era frequente algumas pessoas comprarem uma ou meia soldada de peixe a certos pescadores, especialmente os proprietários das embarcações que tinham direito a várias soldadas, permanentemente, ou seja: sempre que aquele ia à pesca. Era uma para a embarcação, uma para os aparelhos (apetrechos) e uma e meia para ele na sua qualidade de mestre. Durante alguns anos, tivemos uma dessas soldadas comprada, e que custava 1000$00 (mil escudos) por ano, hoje, 5 euros. Quando os filhos cresceram e foram dando conta do trabalho, voltou a actualizar a sua cédula marítima, e ia ele como marinheiro, buscar a sua soldada de peixe para a fartura da família. Havia tal fartura, que sobrava para dar a algumas pessoas da família e até vizinhos. Mais tarde, depois dos meus catorze anos, foi a minha vez de fazer também inscrição marítima, licença indispensável para se poder embarcar como tripulante em qualquer embarcação. Se por um lado eu até gostava de ir ao mar, por outro, havia que assegurar o conduto para casa. Gostava imenso de ir pescar ao chamado peixe de cima de água, de verão. Eram as cachorras (bonitos) e as bicudas (barracudas). Normalmente ia no barco do Tio Francisco Jorge. O mestre era o Francisco, o filho mais velho e por sinal meu vizinho. Como campanha, iam os irmãos dele António e Hermenegildo, eu, o meu amigo de infância Adelino Cambóio, meu tio Deodato e o Francisco da Vigia. Certa noite do mês de Setembro de 1956, arreamos com muito bom tempo. A certa altura, pouco depois da meia-noite, estava-mos ali na marca, fora da Terra do Pão, pescando de linha às bicudas. Por sinal, estava a ser uma boa noite de pesca. Tinha-mos dentro do barco talvez mais de um cento delas. Entretanto, começamos a sentir-se passar por debaixo do barco uns rolos de mar, que aos poucos foram aumentando. O vento era do quadrante Sul. Formavam-se muitas nuvens negras, no horizonte. O mestre, o Francisco Jorge recentemente falecido, ordenou: Aparelhos para a borda e vamos a remar rapidamente para terra. Começavam a ver-se os relâmpagos e a ouvir trovoar por todo o lado. Remava-se aos quatro remos, rumo ao porto. As ondas, continuavam a crescer. A trovoada a aproximar-se. Ao longe, via-se no cais uma luz de petromax (luz a petróleo). Era o Florindo, o João de Manuel da Ritinha e o Aldemiro que já haviam varado, e vendo o tempo a crescer, davam sinal aos outros que ainda estavam no mar, para regressarem rapidamente a terra.
O mar, cobria já o cais de ponta a ponta. Eram vagas de 3 a 4 metros, que de vez em quando davam algum descanso. Quando nos aproximávamos do cais num desses momentos de descanso, aqueles que estavam em terra, gritavam: Não encostem! Não encostem! Sigam de vez para o varadouro com tudo a bordo. A chuva, era quanta Deus mandava, acompanhada de forte trovoada . Neste momento, apaga-se-nos a luz. Às escuras, o Francisco não tendo percebido o que lhe diziam de terra, tenta pôr um homem ou dois em terra para passar e segurar o cabo do revés e outro para alar o cabo da proa como era costume, o que até conseguiu. Foi o António Jorge que fora passar o cabo de revés. Cabos muito frágeis feitos com a tal filaça ou espadana, seca e torcida com uns torcedores de pau; vem uma enorme vaga de mar, o Francisco grita: aguenta o revés! aguenta o revés! O António dá duas ou três voltas com a corda ao pau da ponta do cais, segura bem, mas a força do mar era maior. A corda rebenta, e o barco atravessa-se.
Vem a segunda vaga de mar, volta a embarcação, vem a terceira e a quarta, e, fica tudo à deriva embrulhados na água, barco, bicudas, albarcas, cestos de asa, remos, tilhas, etc. etc. .Ouviam-se os gritos. Todos imaginaram o pior. Quando o mar voltou a acalmar um pouco, estavam cada um para seu canto. Eu fui projectado pelas ondas para cima dumas rochas, ali ao lado direito da entrada do caneiro, onde me consegui agarrar. Um ou outro sempre se conseguiu pôr a salvo sem grandes moléstias, o António e o Hermenegildo, ao tentarem equilibrar o barco na tentativa de o salvar de grandes prezuízos, ficaram debaixo dele e por conseguinte com as pernas todas esfarrapadas. Com a ajuda dos que estavam em terra, sempre se varou o barco, que ficou muito danificado. Ninguém pensava mais em bicudas nem alparcas. Parecia um sonho o que acabava de acontecer. Enquanto isto, o Neves, jovem afoito, amestrando o barco do tio dele, José Mateus, continuava pescando, como que se nada se passasse, indo um pouco ao sabor da maré, já do porto para Oeste, ali para os lados da ribeira velha. Fomos nós que depois de terminada a nossa penitência, os ajudamos a salvar, evitando que passassem pelo mesmo. Estes e as suas bicudas, sãos e salvos, fizeram as suas partilhas, esquecendo aqueles que os haviam ajudado a salvar e que tinham ficado sem uma bicuda para o caldo. Na vida de cada um, há sempre coisas que marcam, mais que outras talvez até mais importantes. Para mim, esta é uma delas. A certa altura, era eu companheiro de pesca do Tomé, proprietário duma pequena embarcação. No dia seguinte, iríamos à pesca das garoupas e peixe-rei. O melhor isco era a moira – pequenos caranguejos – que se apanhavam à mão, uma a uma, entre as pedras à beira mar.
Foi então que, eu mais o meu vizinho e amigo Eduardino, fomos ali para o lado do porto, abaixo do poço de maré, virar pedras e apanhar moira. Ao mais pequeno descuido, o Eduardino que estava ali à minha frente, de costas viradas para mim, atira uma pedra com muitos quilos para trás, e, onde a pedra havia de cair? Precisamente onde eu tinha a minha mão direita, apanhando-me a cabeça do dedo polegar, cuja unha se descolou. O sangue corria abundantemente e eu, corria direito a casa, levar aquela oferta à minha mãe. Esta sem hesitações, e, a chorar lágrimas gordas, lá me acompanhou ao Sr. Correia da cooperativa, fazer o respectivo curativo.

COISAS DUM PASSADO RECENTE

Na minha infância, a vida era mesmo dura. Havia que fazer um pouco de tudo, o que para muito boa gente servia apenas para sobreviver. Os menos activos, passavam grandes necessidades. Disso dou testemunho. Vi muitas vezes alguns amigos meus que viviam abaixo do limiar da pobreza, ao Domingo, quando vínhamos do banho já à tarde, cheios de fome, pois havia que aproveitar bem o dia, visto que só podia ser depois da missa - durante a semana era para trabalhar - quando entravamos em casa de alguns destes companheiros que moravam muito antes da minha casa, presenciei muitas vezes, eles à procura de qualquer coisa para comer, mas... pouco ou nada encontravam. Contavam-me meus pais que, duas gerações antes da minha, numa casa da freguesia, mais propriamente dos pais da Tia Mariana Bodiche, que muito bem conheci, madrinha da minha mãe, e casada com o tio dela – o Tio José Marques, havia uma grade feita de canas – a chamada queijeira - pendurada nos tirantes da cozinha, como aliás acontecia em muitas casas, onde se punha o bolo de milho. Por um lado para estar à fresca, por outro, ficava fora do alcance dos ratos (murganhos). Em muitas casas, o bolo, era distribuído pela mãe e apenas às refeições. Olhava-se e não se tocava. O Francisco, o mais atrevido, aproveitando uma distracção do pessoal lá de casa, vai à grade, pega num quarto de bolo e em dois torresmos do porco dos tais da graxa, e zarpou a correr. A irmã, ao ver o desaforo do Francisco, começa a gritar pela mãe: Ó mãe! Lá vai o ladrão da perna mourisca com um quarto e dois...
Dinheiro, havia pouco na maioria das casas. Os que só viviam da pesca artesanal, muitas vezes não tinham a quem vender o seu peixe. Levavam-no para casa e mandavam os filhos com pequenos cambos às portas de alguns mais abastados onde o poderiam vender ou lhe darem qualquer coisa em troca. Era muito falado um caso de um desses pescadores que, nessas circunstâncias, mandou uma filha que bem conheci, a caso do Tio Manuel da Ritinha com um desses cambos de peixe. Ali, ou porque não tinham dinheiro à mão na ocasião ou por distracção, agradeceram, mas, nada lhe deram. Tendo chegado a casa a moça com as mãos a abanar, a mãe perguntou-lhe: Que é que te deram? Não me deram nada. Esta respondeu: então, vai já lá depressa buscar o peixe e diz que te enganastes, que não era para ali.... Não lembrava ao diabo.

PICO - TERRA DE LOBOS DO MAR

Na Ilha do Pico, terra de “Lobos-do-Mar”, nasceu a pesca do atum nos Açores nos anos 40.
Foi o mestre João Alves, mais conhecido pelo mestre João do Ribeirense que, regressado de São Diego nos Estados Unidos da América para onde havia emigrado, ensinou e pôs em prática aquela pesca à semelhança do que por lá se fazia.
Naqueles tempos e nos que se seguiram, foi a melhor fonte de receita da maioria das famílias da Ilha do Pico, e talvez dos Açores. O mestre João, primeiro mandou construir a traineira “Salazar“ e mais tarde como reinvestimento dos bons resultados obtidos com a mesma, “Carmona”. Depois foi o que se viu, traineiras em todas as ilhas. Emprego para muita gente, não só no mar mas também em terra, para homens e mulheres nas fábricas de conservas de atum. Na Ilha do Pico foram construídas três fábricas de conservas de atum. A primeira nas Lajes do Pico, a segunda na Areia Larga – Madalena, e mais tarde uma nova unidade em São Roque.
De igual modo foram construídas duas em São Jorge, uma no Faial, em São Miguel, Terceira, Graciosa e até na Ilha das Flores. Desde alguns anos, esta indústria entrou em decadência.
Não se sabe bem porquê, as safras têm sido de ano para ano mais fracas pela ausência do atum, à semelhança do que já aconteceu noutras paragens, nomeadamente nos Estados Unidos da América. Por outro lado as condições de vida em terra foram melhorando, e, nesta altura, vai havendo muita dificuldade em encontrar tripulação açoreana para as embarcações, encontrando-se já muitas varadas e outras desmanchadas por directivas da União Europeia. Nos Açores ainda vigora o sistema de soldada ou quinhão. Normalmente 50% do produto da safra é para o armador e 50% para a tripulação. Por esta razão, muitos pescadores não arriscam a perder o seu trabalho durante um verão, designadamente em anos fracos como os últimos. Entretanto, no ano de 2006 e 2007 a pesca do atum nos Açores tem sido das melhores de sempre, nomeadamente na captura do bonito, tendo vindo dar novo alento a esta arte.

OS TRANSPORTES

O Primeiro carro a motor na Ilha do Pico

O trânsito não atrapalhava ninguém. Guardo na minha memória a chegada do primeiro automóvel a gasolina à freguesia de São Caetano. Era um Austin cujo proprietário era o Jorge Brum, filho do Sr. Manuel de Brum que tinha regressado da América onde parece ter amanhado bem.
Meu pai contava com muita piada a passagem do primeiro carro a motor pela freguesia. Foi assim: Na missa Dominical, por altura dos anúncios ou homilia, o pároco anunciava que, quem quisesse ver passar um carro sem ser puxado a bestas, estivesse atento. Mas, em cima duma parede. À tarde iria passar então o primeiro carro a motor na Ilha do Pico. Isto no ano de 1920.
Ele tinha razão. À tarde de facto passou o dito carro, e até parou, mas já todo esfarrapado de arrastar nas hortênsias, e até nas paredes.
A experiência do Augusto Pau de Lérias era pouca, apesar de ter ido a Lisboa no vapor de 12, aprender a manobrar aquele novo engenho, que era bem diferente do carro puxado a bestas, a que estava habituado a conduzir.
Este transporte, servia quase exclusivamente para o transporte e distribuição pelas freguesias, da mala do correio. Não havia dinheiro para as pessoas se fazerem transportar de carro. Era a pé que se faziam grandes percursos. As pessoas de São Caetano quando por qualquer razão iam ao Tribunal da Comarca que estava situado em São Roque, a cerca de 40 quilómetros, o que ainda hoje acontece, normalmente faziam-no pelos matos, atravessando a corta-mato durante a noite.
Consta-se que certa vez, um cavalheiro de São Caetano, cujas famílias bem conheço, quando ia numa dessas travessias pelos matos, encontrou-se com outras pessoas doutra freguesia. Fez-se doente, manquejando, até que um dos companheiros teve pena dele e pegou-lhe às cavalitas.
Chegados ao Cais do Pico, quando o outro o arreou no chão, largou uma grande gargalhada e disse-lhe: Nosso Senhor te pague que assim vim muito melhor. Como era de esperar, o transportador atirou-se a ele mas, como as forças era menores, ficou assim mesmo.
Só mais tarde, um ou outro mais abastado investiu na bicicleta. Primeiro o Carraxana da Terra do Pão, um serrador de madeiras, e depois alguns dos muitos curtidores de peles que existiam em São Caetano.
Era o seu meio de transporte para se deslocarem com as tiras de sola metidas num saco, rumo às freguesias mais longínquas do Concelho.
Recordo aqui uma cena com o curtidor Manuel Jorge (do Alto), que, arriscando a primeira viagem sem saber ainda governar bem o seu trem, ao ver uma velhinha a atravessar o caminho na sua frente na freguesia de São Mateus, atrapalhou-se de tal modo que, sem atinar a apertar a pêra da buzina ou travar, gritava: Arreda-te velha… arreda-te velha!!! A velha não se arredou…Pronto… lá foram os dois para o chão, embrulhados na bicicleta.

O PRIMEIRO AVIÃO

Foi na geração anterior à minha que os primeiros aviões escalaram regularmente os Açores. Recordo aqui uma história verídica do Tio Manuel Lourenço que muito bem conheci, que encontrando-se a roçar nas pastagens altas, juntamente com outras pessoas, que, ao ver nos céus “aquela ave” a fazer tanto barulho, ajoelhou-se, e pediu a nossa Senhora: Ó avezinha de nossa Senhora, não caias em cima de nós.
O Tio Manuel Lourenço era aquele simpático velhinho lá de São Caetano que, vendo levantar-se um grande temporal, estava por dentro da sua janela vigiando as suas batatas brancas na horta. Prevendo o pior, ou seja: a perca de todo o seu trabalho e a falta que as batatinhas tanto lhe iriam fazer, ao ver este a dar-lhe por todos os lados e estas já quase por terra, exclamou:
“Nosso Senhor não é tanto bom como o fazem”. Todo zangado pegou numa foice, vai às batatas, e tratando mal o vento tal como o D. Quixote diz: Não as vais picar todas sozinho, e zás… lá se foi o resto.

SINAIS DOS TEMPOS

Da base Americana das lajes na Ilha Terceira, chegavam as primeiras latas e garrafas, que serviam para levar a sopa e a água para as terras e outros serviços em casa.
Já no final dos anos 50, vinha da Ilha Terceira o Tio José Baixinho, um micaelense que ali viva, com sacos cheios de latas usadas que os americanos deitavam no lixo, de vários tamanhos, para vender. O preço, era normalmente o milho que a lata levava. Mesmo assim não era nada fácil fazer negócio, pois para muitos, o milho era quase tão raro como o dinheiro, e bem mais preciso que as próprias latas.
Daí o Manuel Canela Fina, quando bebia uns copos a mais, cantar:

Em nome do pai e do filho
O Canela não tem milho
E do Espírito Santo
Porque não podia durar tanto.

Do lugar do Monte ou Calhau, cujos habitantes viviam quase exclusivamente do vinho, da aguardente e do mar, vinha o Tio Manuel da Aguardente, mais a filha Luísa com o seu barril de aguardente no carro puxado pela vaquinha, procurar fazer o seu negócio, pelas outras freguesias. O tio Manuel, trazia numa mão a aguilhada e na outra a corda da vac. Entre as freguesias aproveitava para descansar as pernas, sentando-se sobre o varal esquerdo do carro. Mas, sempre que via um luz de carro, toca a saltar para o chão, podia ser o Chefe de Conservação de Estradas, era multa certa e lá se ia o eventual lucro da viagem. A filha Luísa, vinha sentada ao lado do barril de aguardente, toda embrulhada num xaile preto, e por vezes, não se sabe bem se apenas do cheiro da mesma, já vinha meia tralhosa. Na ceve ou num fogueiro do carro, traziam pendurado o lampião a petróleo que os iluminava durante a madrugada e sinalizava também a sua posição na via pública. No Outono, traziam também castanhas para trocar por cinza das lareiras para adubar as terras, além da aguardente, que na maioria dos casos eram trocadas por milho, pois dinheiro havia pouco. A cinza, e o estrume dos animais, eram o adubo usado nas culturas. Não havia adubos. Enquanto uns comiam as castanhas que eram mais ou menos raras para os lados do Sul, o Tio Manuel da aguardente lá fazia assim o seu negócio, levando em troca algum dinheirinho e ainda o precioso milho, o tal indispensável pão dos pobres.

APANHA DO MUSGO

Desde muito novo que sentia prazer em chegar-me para junto das pessoas mais idosas.
Adorava ouvir as suas histórias que traduziam realidades e experiências. Em suma: a cultura do povo. Com elas aprendi muitas coisas que me ajudaram imenso pela vida fora.
Adorava ouvir as suas conversas, falando daqueles tempos com muita ternura, mas do que eu muito gostava de ouvir, eram os “Adágios Populares “ os Provérbios.”
Por muito gostar dos adágios populares e por julgar serem uma forma de homenagear os nossos antepassados e aproveitar as suas experiências e ainda por pensar poder desta forma, dar o meu humilde contributo para que, o que eu considero jóias raras da cultura do povo e sem preço, não desapareçam totalmente aos meus descendentes, mais adiante juntarei uma boa relação desses adágios. Entretanto, gostaria de lembrar aqui alguns deles e seu relacionamento com a vida prática.

A APANHA DO MUSGO

Na minha infância, nos anos 40/50, os travesseiros, onde deitava-mos as nossas cabeças, eram cheios com musgo. Era o melhor que havia na altura. Os colchões das camas eram cheios com a casca do milho, muito bem lavada e desfiada. Eram assim os nossos colchões ortopédicos.
Era então em Janeiro – musgo inteiro – a época que existia musgo em maior abundância nas pastagens baixas e já a amarelecer, sinal da sua madureza. Era ali para os matos da freguesia de São Mateus, cujo acesso era mais suave, que muitas pessoas da freguesa iam normalmente apanhar o seu musgo. Combinavam uns dias antes, e, no dia marcado, lá seguiam os grupos em romaria madrugada cedo, para ir amanhecer ao sítio previsto. Saco debaixo do braço, bordão (cajado) na mão, farnel para o lanche, que normalmente era um quarto de bolo, dois pedaços (ou “torinhos”) de linguiça do porco ainda fresca ou dois ou três torresmos de vinha’lhos e uma laranja, tudo muito bem embrulhado num guardanapo amarrado pelas pontas e toca a palmilhar sete ou oito quilómetros para cada lado. Chegados ao sítio, cada um procurava a melhor toiça de musgo. Arrancava-se e virava-se a raiz para o sol para que este já fosse enxugando e secando, pois à tarde quando se enchia o saco, já estava mais leve.

A HORA DA MERENDA

Merendavam, descansavam e a seguir, cantavam ou assobiavam, enquanto o musgo ia secando.
Pela meia tarde, enchiam-se os sacos. Ajudavam-se uns aos outros, e, quem tinha maior colheita cedia um pouco ao outro que tivera menos sorte ou agilidade. Sacos para as costas e as mulheres e raparigas para a cabeça e, iniciava-se o regresso a casa, cantando. Já em casa, estendia-se o musgo no pátio da sala ou no eirado do tanque (cisterna de água) a enxugar durante alguns dias, sendo mexido várias vezes ao dia, para mais depressa secar. Depois, enchiam-se os travesseiros que ficavam muito fofinhos, pois o lá existente já estava em moinha. Naquela noite até se dormia que era um regalo. Sendo um ritual do mês de Janeiro, fazendo parte da tradição, era também uma festa.
Belos tempos. Tenho saudades.

COSEQUÊNCIAS DA CONJUNTURA

EMIGRAÇÃO PARA OS ESTADOS UNIDOS

A maior preocupação destes emigrantes, era conseguir umas poupanças que dessem para comprar uns alqueires de terra no Faial – Um alqueire de terreno, eram e ainda são 960 m2 – onde os terrenos eram mais férteis, como foi o caso do meu avô. Rendiam anualmente por alqueire, entre três a quatro sacos de milho, conforme os sítios.
Um saco de milho eram 5 alqueires com cerca de treze quilos cada, de forma a garantir o bolo (o pão) para o ano para toda a família. O conduto já seria mais fácil de arranjar, ora do porco, ora ir pescar uns peixes para o famoso “ caldos-de-peie do Pico “, ou uns sargos, salemas mesmo de pedra, ou até mesmo umas lapas. A base da alimentação, era o milho, as batatas-doces, batatas brancas e inhames.

O CALDO DE PEIXE

O Caldo de peixe é um prato típico da Ilha do Pico. Para quem não conhece e quiser experimentar, fica aqui a receita para uma refeição de cerca de 10 pessoas: Põe-se um tacho ao lume com água quanta baste até ferver, à qual se juntam os seguintes temperos:
6 a 8 kg de peixe de pelo menos 2 ou 3 espécies: (bicuda, sargo, abrótea, garoupa, lírio, congro, etc.) ;
· 1 Ramo de salsa;
· 3 Folhas de louro ;
· 1 Kg de tomate;
· 2 ou 3 cebolas;
· 10 Bagas de pimenta-da-jamaica (pau de cravo);
· 4 dl de vinho branco;
· 3 Colheres de massa de malagueta;
· Vinagre quanto baste;
· 2,5 dl de azeite;
· Sal quanto baste
Para o molho cru:
· 1 molho de salsa;
· 5 dentes de alho;
· 1 Colher de sopa de sal grosso (aprox.) ;
· açaflor ;
· Vinagre quanto baste;
· Temperar a gosto com o próprio calda ou água.

CONFECÇÃO:

Corta-se o peixe em postas grossas e leva-se a cozer em lume brando num tacho com água, salsa, louro, tomate e as cebolas cortadas aos quartos, a pimenta, o vinho branco, a massa de malagueta, açaflor, vinagre e sal a gosto. À parte cozem-se batatas inteiras descascadas. Num gral pisa-se a salsa com uns dentes de alho, o sal grosso, açaflor, ao que se junta depois de tudo em papa, um pouco de vinagre e água ou até do próprio caldo, para temperar a gosto, mexendo-se bem, até ficar a gosto. Para servir, põe-se o tacho na mesa e tira-se o peixe para uma grande travessa. Em cada prato coloca-se um bocado de peixe de cada espécie que se rega com o molho cru e acompanha com as batatas e ou bolo de milho. Ao mesmo tempo, serve-se o caldo em tigelas deitando em cada, uma colher de molho cru ou vinho tinto, para quem preferir.
Come-se o peixe com as batatas, bolo de milho ou pão, ao mesmo tempo que se vão bebendo uns golinhos do saboroso caldo ou vinho, para quem o preferir. Há quem junte cominhos no caldo ou no molho. Em São Caetano, alguns deitam vinho no caldo em vez do molho cru.
O meu Avô paterno, António Pinto, como já disse, foi também um desses emigrantes nos Estados Unidos da América. Quando regressou da primeira vez à Ilha do Pico, comprou um moinho de vento. Meu pai contava que, certo dia quando tentou parar o dito moinho, ao passar um cabo à ponta da asa ainda em movimento, não tendo conseguido, foi agarrado à mesma, e só escapou a um grande acidente com a ajuda do meu avô materno que ali se encontrava, e, passou novamente o dito cabo desta feita encerrando a questão. Levou tal susto que prometeu a si mesmo: Moinhos de vento… nunca mais. Voltou então a emigrar para os Estados Unidos da América, tinha já três filhos. Quando regressou dessa segunda vez, estes, os filhos, já crescidos sem a presença do pai, não queriam aceitar aquele homem lá em casa, de maneira nenhuma.
A minha avó contava-nos muitas histórias que o meu avô passara lá nos Estados Unidos e mandava dizer nas cartas. Recordo-me duma quadra dele, que ela citava muitas vezes,

Olho para todos os lados
Nem mulher nem filhos posso avistar
Só vejo neve aos montes
Dá-me vontade de chorar

Cheguei a ver dessas cartas num baú existente na casinha de baixo da minha avó – casa de despejos e arrumações – que ele tinha trazido lá da América com as suas coisas. Recordo com saudade o meu pai a contar uma cena passada com o meu avô no rancho, lá nos Estados Unidos:
Certo dia, estava o meu avô no seu trabalho, cuidando do gado, quando chega junto dele um indivíduo montado num bonito cavalo. Apeou-se, e dirigindo-se ao meu avô, pergunta-lhe: Podes deixar-me dar água ao meu cavalo? Meu Avô respondeu-lhe: Sim, penso que o meu patrão não se irá chatear comigo por isso. Entregou-lhe um balde para o efeito, e o dito homem, depois de dar a água ao cavalo, atira o balde ao ar e dá-lhe com o calcanhar da bota, tendo o balde ido parar longe. Meu avô todo irritado com tal atitude, dirige-se ao homem em tom severo e pergunta-lhe: Então é assim que você agradece depois de haver sido servido? Resposta: O teu patrão, o Mela é muito rico, esse balde não lhe faz falta nenhuma! Meu avô respondeu-lhe exaltado: Se o meu patrão tem muito dinheiro é o seu trabalho, e eu estou aqui para zelar pelas coisas dele, como se fossem minhas. É para isso que ele me paga. O Homem deu uma valente gargalhada, montou o cavalo e zarpou. No final do mês, qual a espanto do meu avô, quando foi chamado ao escritório do patrão. Todo nervoso, sem saber do que se iria passar, depara com o “Homem do cavalo” que lhe pergunta: Conheces o Mela? Diz meu avô: Não senhor, não conheço. Então ficas conhecendo: O Mela sou eu. A partir desta data tu serás o encarregado deste rancho e passas a ganhar o dobro do que estás ganhando, $2 dolars por mês. O meu avô, depois de regressar ao Pico pela segunda vez, comprou terras na Freguesia na Feteira, na Ilha do Faial e também no sítio do Arrodeio, da freguesia vizinha de São Mateus. Além disso, ia também à pesca local, e assim, apesar das muitas doenças que aconteceram lá em casa nos filhos e nele próprio, havia uma mesa abundante.
A minha avó paterna e a minha tia Margarida, faziam um bolinho de milho muito bem feito, que não desmerecia o da minha mãe. Coisas que nunca se esquecem e deixam grandes saudades pela vida foram. Fui muitas vezes com a maquia de milho metida de capuz na cabeça, a moer aos moinhos de vento e moagens, tanto na Prainha como na Terra do Pão e São Mateus. No regresso a casa, a farinha quente quase nos cozia a cabeça, razão pela qual alguns apanhassem grandes problemas de saúde para o futuro.
No verão, quando não havia vento, era quase uma tragédia. Só mesmo nas moagens.

CAÇA À BALEIA

O TIO RAXA (O VIGIA)

Em São Caetano, na minha infância, o vigia, era o Tio Raxa, uma figura carismática e respeitada.
Diziam os que melhor o conheciam, que o Tio Raxa gostava muito duma pinguinha de vinho.
A vigia das baleias, ficava num alto, entre os dois moinhos de vento, que existiam na freguesia, o do Domingos e o do mestre Pompeu, ali no meio das adegas, do chamado Caminho do Meio. Muitas pessoas o convidavam para ir à sua adega beber uma tigela (de barro) de vinho.
Eu e outros rapazes amigos, gostava-mos muito de ir visitar o Tio Raxa à sua vigia, para ele nos deixar pôr os olhos por alguns momentos no seu binóculo de 18 vezes. Aquilo tinha um sabor especial, no tempo. Coisa engraçada e não rara, é que, muitas vezes, passava-mos no caminho e, víamos o chapéu do Tio Raxa pela fresta horizontal da vigia sobre o binóculo. Chegava-mos lá, era de facto o chapéu e o binóculo do Tio Raxa, mas, o resto tinha andado. Tinha ido consular o corpo e a alma para a adega dum amigo qualquer, que o havia convidado. A certa altura por volta dos meus 13, 14 anos, era mestre da lancha Espartel o Sr. João Abraão (filho); trancador (ou arpoador) de um dos dois botes o irmão Manuel Abraão, e oficial ou mestre do mesmo bote o pai destes, o mestre João Abraão (velho). Pessoa boa, bom conversador e contador de histórias, mestre João Abraão tinha estado emigrado nos Estados Unidos. Era amigo de dar atenção aos mais novos. Gostava muito de mim, e prometeu-me um passeio na lancha Espartel - o que seria um sucesso - à Festa de Nossa Senhora de Lourdes, que se venera na Igreja das Lajes do Pico, no último Domingo de Agosto, na certeza de que o filho João, não lho havia negar. Eu, esfregando as mãos de contente, dei a notícia em casa aos meus pais e irmãos. No tempo, já era muito bom ir à Vila àquela festa, e para mais na lancha Espartel.
Qual não foi o meu espanto quando o Mestre João Abraão me informou de que o seu pedido não tinha sido atendido por aquele seu filho de quem ele tinha muito orgulho? Acreditem que fiquei talvez com mais pena dele, do que ele de mim.
Tantos nomes de baleeiros célebres, outras figuras carismáticas, que ficaram na história da caça à baleia em São Caetano. O povo duma maneira geral, era bom. Respeitava toda e qualquer pessoa de fora da terra que por lá vivesse ou passasse. Alguns baleeiros – normalmente os mais simpáticos – eram convidados para as matanças dos porcos, para ir à adega beber umas tigelas de vinho, para ajudar a vindimar as uvas, etc. Estes, agradeciam, pois normalmente gostavam muito daquele precioso líquido e sempre levavam para casa um cesto de asa de uvas para comer mais a família. Recordo-me ainda dos tempos do Caçoila do Capão do Loiro, etc. profissionais da baleia, que mais para o fim da festa, até cantavam o desafio.
Muito novo ainda, parece-me estar a ver e ouvir o Capão a cantar ao desafio a sua cantiga ao Caçoila:
O Raxa mais o Caçoila
São dois amigos leais
Se o raxa gosta de vinho
O Caçoila muito mais

Com a entrada de Portugal na União Europeia, no ano de 1978, foi proibida a caça à baleia na Comunidade Europeia e por conseguinte, também nos Açores.
No Pico, onde houve forte actividade, resta apenas e ainda bem, o museu da baleia nas Lajes do Pico que vale a pena visitar, onde se pode ver tudo em artesanato, a tenda do ferreiro, o bote, a palamenta, as ferramentas e utensílios que eram utilizados, e se podem recordar aqueles saudosos tempos.
No cais do Pico (São Roque), existe a Fábrica-Museu com todos os seus equipamentos, caldeiras, máquinas, etc., muito bem conservados,

Emigração para os Estados Unidos

Era nas baleeiras americanas quem embarcavam clandestinamente muitos Açoreanos, no século XX, para os Estados Unidos da América do Norte, durante a noite em determinadas rochas do mar. Recordo aqui um caso verdadeiro que ouvia contar aos meus pais, dum tal Domingos Jorge, irmão do tio Francisco Jorge que bem conheci, e era casado com a irmã Ana da minha Avó paterna, que também foi destes emigrantes. Apesar dos seus onze anos, encontrava-se numa terra a trabalhar com o pai. De repente, chega ali alguém da família, um tio, e diz para o pai do rapazinho: - Sabes! A Baleeira vem esta noite buscar pessoal, não queres mandar o vosso Domingos? Acho que era uma boa oportunidade, vai também fulano e sicranos... sempre olhavam por ele na viagem, etc. etc. O rapaz ouvindo aquela conversa desata a chorar, o que se calcula só dever ter parado já em terras do Tio Sam.
Conta-se que foi pegado de braçado e, esperneava como um animalzinho, mas, o seu destino estava traçado. Levado até a casa, a mãe punha de imediato uns cocos (inhames) que tinha ao lume a cozer, mas que ainda estavam quase crus numa bolsa de pano, para ele levar e comer entretanto. Não havia tempo a perder. Entregue a bordo, lá seguiu o seu destino. Sabe Deus as que deve ter passado. E por lá ficou para sempre, sem que nunca mais tivesse voltado à sua Ilha do Pico.
Mesmo assim, muitos, os que tinham mais sorte, apareciam cá mais tarde, com um bom cinto de águias em ouro – cada águia valia 20 dólares.

30 de março de 2009

AS FEITICEIRAS

Terminadas as vindimas e o vinho já descansado nas pipas, era então a época das feiticeiras.
“Pelo São Martinho, vai à adega e prova o vinho”

Constava-se que uma vez, o meu avô materno que bem conheci, Manuel Amaro, convidou o seu amigo Armando Garcia da Rosa, mais conhecido pelo Armando da Lúcia, para irem à sua adega, na canada dos coxos. A certa altura, depois de bebidas uma valentes tigelas de vinho, e, quando o juízo começava a baralhar, normalmente entravam na conversa, as feiticeiras. Já a caminho de casa pela canada dos coxos fora, noite escura, meu avô que era dado a umas certas baldas, abraçara-se a um cepo duma faia que estava na berma do caminho, e grita: Armando… olha aqui uma feiticeira, chega-lhe Armando que eu tenho-a bem presa. Ora o Armando que não estava nada melhor e tinha uma pancada ainda maior que a do meu avô, deu-lhe... enquanto as mãos aguentaram. Ficou como um Cristo.
Havia muito medo, especialmente durante a noite. Até o simples molho de cana ou espiga de milho que os pastores levavam madrugada cedo, às vacas, ao roçar nas pesadas canecas de madeira de cedro, já pareciam almas do outro mundo a atacar por todos os lados. Seriam boas? Seriam más? Era a dúvida.
Os rapazes, contavam uns aos outros, histórias que ouviam em casa e aos mais velhos, do que tinha acontecido a este e àquele, que eram de arrepiar os cabelos e fazer pele de galinha.
Meu primo Delfim, já falecido há muitos anos no Brasil, era um especialista nesta área. A mãe dele, minha tia Virgínia, tinha estado na América onde nascera, muitos anos, e, “muitas delas eram então americanas”, por isso, eram mesmo verdade e muito mais importantes.
Íamos para a casinha de palha de meu Avô na canada dos coxos, e, normalmente, quando a cena acabava, já ao anoitecer, estava-mos os dois a chorar, e com um medo terrível de ir para casa sozinhos. Os mais crentes, falavam das almas do outro mundo, de várias formas. Uns, imaginavam-nas como pessoas, outros como sombras, outros como barulhos, vozes, aragens, arrepios de frio, etc.
O Tio José da Ribeira, velhinho carismático e sempre bem-disposto, quando bebia qualquer pinguinha a mais, contava muitas histórias sobre feiticeiras, que para ele eram mesmo verídicas. Dizia ele, que, uma bela noite, quando regressava da adega mais o filho Caetano, ali pela canada da Emília acima – uma vereda estreita onde só se passava a pé, que ligava o caminho do meio ou das adegas ao caminho municipal, a Rua dos Bagaços, que por sua vez ligava às outras ruas da freguesia, olhou para o cabeço da Prainha lá ao fundo, e, “elas” eram às dúzias. Umas para baixo, outras para cima, e até outras na direcção dele. (As feiticeiras era descritas na maioria dos casos, como que em forma de luzes incandescentes, mulheres, burras, etc.)
Faltaram-lhe as forças nas pernas, deitou-se e mandou deitar também o Caetano no chão. Elas eram tantas, que só madrugada cedo, depois de até ter pegado no sono, quando levantou a cabeça e viu que já tinham desaparecido, puxou por um braço do filho Caetano e, enchendo-se de coragem disse-lhe: Caetano, agora é p’ra frente, morrer ou viver. Dava gosto ouvi-lo, todo convencido, a contar as suas histórias e cantar as suas canções muito antigas e, praticamente únicas. O Frei João, a Nau-Catrineta, etc.
Como já foi dito, naquele tempo, um dos principais divertimentos, era ir à adega com um petisco, em família ou com um amigo.
Não havia electricidade, por conseguinte, também não havia iluminação pública. Quando saiam da luz da vela, da adega para a rua, viam-se muitas feiticeiras. Eram luzes por todos os lados. Alguns viam-nas sob as mais diversas formas.
Contavam alguns, que, certo curtidor que ia vender a sua sola para os lados da Madalena, ao passar pela Taberna Daniel – “lugar muito perigoso” - ali no lugar do Campo Raso, às tantas da noite, vira uma burra atravessada no caminho com uma corda de rastos, presa ao pescoço. Pensou: este animal vai fazer prejuízo por aí esta noite. E resolveu apanhá-la para amarrar a uma parede, até que o dono aparecesse.
Quando lhe ia pegar na corda, a burra dá uma valente gargalhada e transforma-se numa mulher que ele bem conhecia e era da sua freguesia, saltou-lhe para as costas, e obrigou-o a ir pô-la em casa dela, caso contrário, e ou a denunciasse a alguém, morreria. Com estas ordens, quem podia resistir. Foi pegar e andar, e, bico calado.
Nota: A taberna Daniel, era uma taberna que ficava isolada das casas à beira da estrada, no lugar do Campo Raso. Era um lugar onde, diz a lenda, se assustava muita gente. Por estas e idênticas razões, está claro.
Outro caso, fora passado com um indivíduo da vizinha freguesia de São Mateus, que namorava uma rapariga com quem casou em São Caetano. Certa noite quando regressava a casa já tarde, encontrou uma grande abóbora iluminada com a forma de cabeça de pessoa humana, no extremo das duas freguesias. Ao tentar passar ao lado dela, esta transforma-se em mulher, e, como no caso anterior, obrigou-o a ir pô-la também em casa dela, com as mesmas exigências.
Como as coisas mudaram?! Agora, com a malandrice que por aí prolifera, não sei se teriam tanta sorte.

29 de março de 2009

PROVÉRBIOS

  • Quem não deve, não teme.
  • Quem a ferros mata, a ferros morre.
  • Quem anda à chuva, molha-se.
  • Quem dá aos pobres, empresta a Deus.
  • Quem quere vá, quem náo quere, mande.

AS VINDIMAS

Freguesia de São Caetano – Pico – anos 40/50 do Século XX.
Era chegado o verão. Aproximava-se a época das vindimas. Toda a gente lavava os cestos e preparava as suas vasilhas. Alguns punham-nos de molho na água salgada. Diziam que não só ficavam limpos, como a própria água do mar os conservava. Era a também a época da apanha dos bonitos (atum) e das bicudas, era preciso salgar e secar alguns peixes para se fazerem os saborosos molhos fervidos de cebolada para os almoços e jantares nas vinhas e nas adegas. Com tanto calor, comer um bom pedaço de bonito ou bicuda num molho fervido com batas brancas cozidas ali mesmo na adega, num caldeirão sobre duas pedras, com lenda das próprias videiras da vinha da adega, um bocado de bolo quente e umas tigelas de barro de vinho velho ou até misturado com mosto, à sombra, era muito agradável naquela época. A partir da última semana de Agosto, já começava a colheita normal das uvas, especialmente das vinhas da beira costa, que por serem mais secas, a uva amadurecia primeiro. Alguns, até aproveitavam para fazer o primeiro vinho já para ser bebido às refeições por altura das vindimas, e outros, os mais sequiosos, aproveitavam-no para matar o vício e rachar a cabeça um pouco mais cedo. Era uma época alegre e desejada, principalmente pelas camadas mais jovens que se juntavam a ajudar uns aos outros. Dados os ajuntamentos, era também uma bela altura para uns namoricos. Cantavam, riam, brincavam, assobiavam naquelas vinhas, saltando os portais de pedra, andando por veredas e atalhos num corrupio com os cestos às costas e à cabeça, no caso das mulheres, etc. Em certas adegas, em dia de vindima, normalmente depois do jantar e a uva já nos balseiros para a fermentação, havia folia; dança, cantares e guitarradas. A adega dos meus pais era de dois pisos, rés-do-chão e primeiro andar. O engenho de esmagar as uvas era colocado no primeiro andar onde havia uma abertura no soalho, por onde as uvas caiam já dentro dos balseiros - dois depósitos em betão que existiam num canto do rés-do-chão. Passados cinco a seis dias, eram então sangrados os balseiros pelo borreiro existente na parte inferior dos mesmos. O vinho que ia saindo, era metido nas pipas onde ficava a repousar cerca de dois meses. Depois era passado a grandes celhas de madeira de cedro chamadas adornas. As pipas eram lavadas, e o vinho, agora limpo da borra, ia novamente para dentro delas, e, a borra, era posta juntamente com a casca (bagaço) da uva para queimar no alambique e transformar em aguardente. Um dos ex-libris da freguesia, eram os alambiques do Sr. Azevedo. Um grande armazém dum só piso, com três engenhos de queima: Um grande, um médio e um mais pequeno, que eram usados conforme a necessidade. No armazém, havia uma grande zona, onde se encontravam colocados sobre canteiros, grandes balseiros de madeira na vertical e de boca aberta, que eram disponibilizados pelo dono do alambique, o Sr. Azevedo, para quem não tivesse vasilhas suas ou sítio próprio, os poderem utilizar, colocando ali os figos das suas figueiras a fermentar, até que fossem também transformados em aguardente. Era hábito no dia de fazer aguardente, e por altura do enchimento em grandes garrafões lá mesmo no alambique, dar a provar “da nossa” a quantos ali se encontrassem, começando pelo lambiqueiro, no meu tempo o mestre Augusto. Escusado será dizer que todos os dias naquela época – Outono – havia sempre algumas pessoas que aproveitavam para ir buscar uns galheiros (lenha) a umas terras que (não) tinham ali para aqueles lados, e, à hora da prova, também lá estavam. Na freguesia, como na ilha do Pico, quase todas as pessoas tinham a sua adega onde faziam e guardavam o vinho e a aguardente.
Havia pessoas que todos os dias davam o seu passeio à adega. Convidavam-se os amigos, onde com qualquer petisco, nem que fossem uns chicharros assados com um pedaço de bolo, uma lata de sardinha de conserva e umas malaguetas, favas torradas, etc. se bebiam umas tigelas de vinho, ou uns copinhos de aguardente, para quem preferisse. No dia de São Pedro, 29 de Junho, fazia-se dia Santo. Quase toda a gente ia à adega com a merenda, sem faltar as favas torradas, como era tradição. À tarde, juntavam-se no largo de São João, ali abaixo dos moinhos.
Havia quase sempre quem trazia uma viola e ou uma guitarra, e toca a bailar chamarritas do Pico, dançar e cantar. Às vezes, para alguns a coisa aquecia mesmo a sério e chegavam a casa com a cabeça rachada, o nariz partido, a cara arranhada ou a camisa rasgada, ora por empeçarem nas paredes que eram teimosas em não se desviar, ora por certas rixas até de ocasião com os próprios amigos, que se encontrassem nas mesmas circunstâncias. O vinho, era também uma das poucas fontes de receita de muitas famílias da ilha do Pico.

A Canção do Vinho

Era o vinho meu bem era o vinho
Era o vinho que eu mais adorava
Só por morte ó meu bem desta sorte
Só por morte é que o vinho eu deixava.

Quero ver-me encostado a uma pipa
Com um copo de vinho na mão
Que o bom vinho represente o meu sangue
E o copo o meu coração.

Quero morrer à porta da adega
C’o este copo de vinho na mão
Das garrafas fazer castiçais
E das pipas fazer o caixão.

Paisagem da cultura da vinha no Pico - Património Mundial

A paisagem da cultura da vinha na ilha do Pico – Açores, abrangendo uma enorme área da Ilha, incluindo adegas, solares, ETC., foi considerada PATRIMÓNIO MUNDIAL pela agência das Nações Unidas – UNESCO – na sua reunião de 2 de Julho de 2004 na cidade Japonesa de Suzhou. O vinho verdelho produzido na Ilha do Pico, devido à sua elevada qualidade, chegou a ser servido à mesa dos czares e no Vaticano.

A CAÇA Á BALEIA

















A caça à baleia, fez-se por quase todas as Ilhas dos Açores, mas eram desta Ilha do Pico os mais bravos baleeiros, desde o tempo em que embarcavam nas baleeiras americanas clandestinamente, nas rochas do calhau durante a noite, situação muito vulgar, algumas gerações anteriores à minha, como atrás foi dito.O custo da viagem para os Estados Unidos, onde eram deixados à sua sorte, mal encontrassem a terra, era ter que trabalhar a bordo de seis meses a dois anos na caça e transformação das baleias, derretendo-as, ou até encher os tanques da baleeira de azeite.Desembarcados na América, eram, ao contrário das tartarugas quando nascem, estas para fora, eles para dentro, cada um à sua sorte.Assim aconteceu também com o meu avô paterno, António Francisco Manuel, cujo paradeiro foi a serra de Nevada como pastor – vigia de ovelhas – os chamados “Ovelheiros“, ganhando meio peso – meia dólar – por quinzena, alguns casados e com filhos como era o caso dele.Sou do tempo em que até o azeite de baleia, era racionado.Só vendiam um litro a cada pessoa, o que fez com que fosse necessário, eu, com apenas os meus 4 anos, ir conjuntamente com os meus dois irmãos mais velhos, para a bicha, na chamada casa da baleia no porto da freguesia vizinha de São Mateus, a cerca de quatro quilómetros de minha casa onde se derretiam algumas baleias, quando as outras fábricas da ilha estavam cheias.Era conveniente estar por lá cerca das cinco horas da manhã para tomar lugar na fila de espera, com as famosas bilhas de genebra (grés) que só por si, pesavam quase um quilo, caso contrário, corria-se o risco de regressar a casa sem azeite para a candeia.Da baleia extraíam-se também os dentes de marfim, com os quais, mais tarde, se fez artesanato alusivo à causa; ora com gravações em relevo, ora com scrimshaw.Nesta especialidade, haviam grandes artistas. Em meu entender e no meu tempo, era a Fátima Madruga, a mais perfeita.Além da perfeição na execução da obra, apresentava motivos reais relacionados com as cenas da caça à baleia e autenticas fotos dos mais bravos baleeiros do Pico.Tenho muito orgulho numa pequena colecção de dentes de cachalote com alguns dos melhores trabalhos feitos, pelas delicadas mãos da minha amiga Fátima Madruga, o que já hoje vai sendo coisa rara.Também me lembro muito bem, de algumas famílias dafreguesia que tinham embarcações de pesca próprias, como por exemplo: o Tio Francisco Jorge, Tio Manuel da Ritinha do Cabeço, o irmão António da Ritinha, os Vigias, o José Mateus e outros, irem pescar aos albafares bravos, para derreter os fígados para queimar o óleo na iluminação das suas casas.Usava-se ainda este azeite de albafar para lubrificação de certas ferramentas e rodízios e havia ainda quem nele molhava um comprido cordão de fiado da lã, que se punha à volta das plantações de batatas-doces nas hortas, para afastar os coelhos bravos, que normalmente vinham das suas tocas, comer a rama das mesmas.Na lha do Pico, como é sobejamente conhecido, vivia-se muito à volta do mar e por conseguinte também da baleia. Não exclusivamente, mas como complemento, sempre era uma boa ajuda, receber por uma soldada no fim do ano, cerca de 1000$00 mil escudos (hoje 5 Euros). Todos tinham, geralmente os seus pedacinhos de terra, onde cultivavam umas batatas, inhames, milho, feijão, abóboras, etc.. Isto na década de 40.Mais por fim, em anos bons, chegou-se a dividir soldadas anuais entre os 3.000$00 e 5.000$00 escudos (quinze e vinte e cinco euros).Existiam várias armações baleeiras na ilha. No Cais do Pico, Vila das Lajes do Pico, Ribeiras e ainda outra na Freguesia da Calheta de Nesquim.Haviam frotas estrategicamente colocadas nos diversos portos da Ilha, para que pudessem chegar mais depressa à ou às baleias, consoante se tratasse duma baleia (cachalote) grande e isolada, ou de um cardume.No meu tempo, recordo-me de existir uma frota instalada em São Caetano: dois botes e uma lancha, a Espartel, a lancha que melhor andava na sua época. Em São Mateus: Três botes e uma lancha, nas vilas das lajes,14 botes e quatro lanchas, na Freguesia das Ribeiras, duas lanchas e quatro botes na Calheta de Nesquim, duas lanchas e sete botes e ainda uma grande frota que não sei quantificar, no Cais do Pico.Quero deixar aqui uma ressalva, no que diz respeito às quantidades cuja certeza não tenho presente, pois ainda hoje alguns que continuam atentos, não me perdoariam se os esquecesse.Havia duas fábricas de transformação das baleias. Uma nas Lajes do Pico, outra no Cais do Pico, onde além da transformação do toucinho em azeite, se fabricavam também farinhas da carne e dos ossos daquelas, para adubos e alimentos de certos animais. Como já disse, também se derreteu no porto de São Mateus.
A Vigia da BaleiaExistiam vigias - uma pequena cabine com uma ranhura horizontal na frente - em vários pontos vitais da ilha, normalmente sobre cabeços ou lugares altos e bem vistosos, feitas em pedra.Os vigias ali colocados, principiavam manhã cedo no seu labor, correndo com os seus binóculos de 18 vezes minuciosamente os amplos horizontes à sua vista, na expectativa de serem os primeiros a localizar as baleias e atirar o foguete – os vigias ganhavam um pequeno ordenado e também uma soldada.Havia muita rivalidade entre as diversas companhias a laborar na ilha.Dia de baleia, era dia de alvoroço na freguesia. Estalava o foguete e, todo o baleeiro, estivesse onde estivesse, largava tudo e corria em direcção ao porto. Nem passava em casa.A mulher ou filhos iam levar-lhe a comida e mais alguma peça de roupa ao porto, enquanto estes iam arreando os botes, pois a lancha já se encontrava no mar presa na sua amarração própria.Os baleeiros tinham outras actividades. Não era possível viver exclusivamente só daquela.Consta-se – e é verdade, pois foi-me confirmado pelo próprio - que no lugar da Ribeira do Meio, freguesia das Lajes do Pico, o mestre Francisco Machado, mais conhecido pelo “Barbeiro”, (actualmente sogro do meu irmão Jorge e meu grande amigo) que exercia também e com muita perícia aquele ofício, ao ouvir o foguete para baleia, deixou sentado na cadeira da sua barbearia o João Medina, também conhecido pelo João Cabo-de-mar, com meia barba feita e outra meia por fazer.
Era assim. Primeiro a baleia. Havia toda uma expectativa em várias direcções.Os baleeiros na de caçar a baleia, as famílias na de que algo poderia não correrem bem, os armadores e os merceeiros, na expectativa de lhe chegar também um dinheirinho, etc. etc.Não foram poucas as vezes em que, nem todos regressaram a casa. Por vezes as coisas corriam mesmo mal.A baleia ao sentir o arpão na pele, reagia das mais diferentes maneiras; ora levantando e voltando o bote, ora batendo-lhe com o rabo de cima para baixo partindo-o e deixando tudo e todos espalhados por cima das águas profundas e salgadas, à conta de Deus e à sua sorte.Nesta operação, muitas vezes os que eram directamente apanhados, tinham morte quase instantânea. Alguns, nunca mais apareceram.

CONTINUAÇÃO SOBRE A FREGUESIA

A freguesia de São Caetano, tem a maior e melhor baía da ilha. Era ali que, as traineiras vinham apanhar o isco (chicharrinhos) para a pesca do atum, especialmente quando o não encontravam noutros lados. Em noites calmas de verão, por vezes eram tantas as luzes, que nos pareciam uma Vila. Meus Pais, pessoas humildes, em tempos de pouca fartura, haviam iniciado a sua vida a dois a partir do nada, casando-se no ano de 1933. O padrinho do casamento do meu pai, o Tio António Medeiros, irmão da minha Avó Paterna, oferecera-lhe um queijo fresco de leite de cabra e dissera-lhe que poderia ficar também com respectivo pratinho. Ainda antes de casar, haviam feito alguns melhoramentos na pobre casa da Rita do Ferreiro como eles lhe chamavam, ali na Canada do Frade para onde foram habitar, que se encontrava tão-somente com as paredes no ar, com o tecto caído, sem porta nem janela, etc. etc. Cerca de 2 anos depois, compraram na mesma rua outra casa, também esta precisando muito de obras de restauro e reparação, mas desta vez já era sua. Meu Pai principiou a sua vida trabalhando de sol a sol, dia a dia para este e para aquele, pegando em cargas muito acima das suas possibilidades, puxando pela enxada até o corpo aguentar; Caso contrário ninguém lhe daria um dia de trabalho. Em todos os tempos, houve pessoas com mais ou menos escrúpulos, e nessa época já não faltava quem se aproveitasse da pior forma, do suor dos mais necessitados; isto no tempo em que o salário diário de um trabalhador agrícola era de (uma serrilha) vinte centavos, que para melhor compreensão, comprava 4 (quatro) pães de trigo de 350 gramas, contava eles. Nos primeiros tempos, como contava a minha Mãe, além do seu trabalho doméstico em casa, preparava a comida que ia levar ao meu pai às terras, e por lá ficava normalmente até perto da hora do jantar a ajudá-lo naquilo que podia. Mais tarde, e à medida que os filhos foram chegando, o tempo foi faltando.
Mesmo assim, e apesar das poucas mudas de roupa que existiam, por vezes eram lavadas ao fim da semana de trabalho, normalmente no fim do Sábado, para voltarem a ser vestidas na segunda-feira seguinte demanhã. Muitas vezes, designadamente durante o Inverno quando chovia abundantemente, eram lavadas e enxutas sobre uns galheiros, (lenha) ao lado do caldeirão de ferro fundido sobre uma grelha de três pés também de ferro, ao calor do lume da lareira. Parece que estou vendo e ouvindo a minha Mãe a lavar roupa no poço junto ao tanque (à cisterna), lavando e cantando:

Ó mãe que horas passavas
Na aurora da minha vida
Junto ao berço que me embalavas
Meigamente me beijavas
Nessa infância tão querida

Naquele tempo não conhecia
Esses pecados sacrílegos
Ao lembrar-me quando eu ia
A saltar com alegria
Aos ninhos dos pintassílgo

Via o mundo a sorrir
Nesse meu sonho de amores
Sorria lindo o por vir
E agora estou a sentir
Tanto martírio e dores…

Não me lembro de ter havido nenhuma segunda-feira que alguém da família não tenha saído de casa com roupa lavada e passada a ferro aquecido com as brasas da lareira.
Meu pai, era uma pessoa exigente, honesto e trabalhador do qual me lembro todos os dias, dizia ter comido do “pão que o Diabo amassou com o Cu”, o que não queria para os filhos, mesmo que muito lhe viesse a custar. Fez das tripas coração, dando de si, o que podia e o que não podia, para que pudesse, como só pedia a Deus, adquirir terras onde cultivar o necessário para o sustento e fartura dos filhos. Nos seus princípios, era aos Domingos, dias santos e de chuva, que aproveitava para rasgar as suas vinhas – rasgar vinhas, era, desbravar terrenos incultos, abandonados, arrancar faias e demais lenhas – onde pudesse plantar as primeiras parreiras, e num futuro próximo começar a ter uvas para a família comer e fazer vinho que pudesse vender para a ajuda do orçamento familiar. Principiou pela “Canada dos Coxos”, terreno que embora novamente inculto, ainda continua pertencendo à família. Contava a minha mãe que quando lhe ia levar a comida, dava-lhe vontade de chorar ao encontrá-lo por vezes todo molhado a trabalhar com uma saca de serapilheira já toda molhada por cima dos ombros, pois nem a chuva o fazia parar.
A vinha do Jacinto, era a nossa vinha preferida. Ali, comia-mos os primeiros bagos de uva nos primeiros dias de Agosto. Nesta vinha, além da vinha, havia também uma ameixieira que dava muitas e saborosas ameixas pretas e miúdas e várias figueiras de bico de mel. Ficava relativamente perto de casa, à beira da estrada regional, e, era um lugar muito vistoso, onde hoje tenho uma pequena vivenda, que eu, os meus filhos e netos adoramos passar uns dias, especialmente no verão. Herdou meu pai metade desta vinha por morte do meu avô paterno, e comprou a outra metade ao irmão Sebastião, meu tio e padrinho.

Os Adágios Populares

Naquele tempo ouviam-se e respeitavam-se muito os provérbios ou adágios populares. Muitas pessoas quase sempre quando falavam acerca das mais variadas coisas, normalmente citavam um provérbio. Era a cultura do povo. Meu Pai, era daqueles que, entre outros, pensava e dizia-nos: É preciso ter o barco sempre aproado à vaga de mar” caso contrário, corre-se o risco de meter água ou revirar. Contava também uma história em versos, que eu achava muita graça:

“Casa, quanta mores
Vinha, quanta podes
Lavrança ...
Quanta a vista alcança”.

Lá vai a Rita
Mai-lo Joaquim
Com saia de chita
Calças de cotim.

Têm campos, herdades
Têm juntas de bois
Trabalham as terras
Sozinhos os dois. Etc.
No tempo, era nos poços de maré (água salobra do mar) que a maioria das pessoas se abastecia de água para lavar roupas, e até para cozinhar. Água potável, no verão era escassa, pouca havia. Só aquele felizardo que tivesse uma boa cisterna, evitava ir parar ao poço de maré.
A minha Mãe, para mim, modelo de mãe, graças ao marido que teve, nunca lá precisou de ir. Sempre teve toda a que precisou na sua cisterna.

A cisterna de meus pais

Como atrás acabei de referir, cada qual teria que ter a sua cisterna, para aparar a água das chuvas. Meu pai, construiu uma toda em pedra; e cada uma... que, sozinho lá ia rolando conforme podia, e tão bem feita na qual nunca faltava água em pleno verão. Com a água dele matou a sede, não só a muitos dos vizinhos, mas também a muita gente da freguesia que por ali passavam e enchiam as suas bilhas de barro ou latas para levarem para as terras das redondezas.
Era da terra e do mar quer se vivia. Não haviam super nem hipermercados. Da mercearia vinha normalmente para casa duma família com saúde, o petróleo para a iluminação, cuja candeia ou candeeiro só se acendia quando já nada se via, o sabão azul, o cotim para as calças, a chita para os vestidos e aventais das mulheres, o sal para a cozinha e salga do porco e do peixe para o Inverno e pouco mais. O açúcar e o pão de trigo, só em casos de doença. Falei de petróleo, mas esse já representava o progresso. Sou do tempo em que a iluminação se fazia com o azeite do toucinho das baleias derretido e também do fígado dos tubarões (albafares), e mesmo assim não era para todos. Eram de facto tempos muito difíceis.
A Matança do Porco

No início de cada ano, normalmente em Janeiro e Fevereiro, quase todas as famílias matavam o seu porco, que fazia a fartura da casa e a maior festa anual das famílias.
Um mês antes da matança, as pessoas iam às pasgtagens altas cortar as vassouras – a urze – que depois de bem secas, serviam para chamuscar o porco, isto é: queimar-lhe o cabelo para a posterior limpeza da pele. Três dias antes do dia da matança, arrancavam-se as cebolas de rama, limpavam-se, lavavam-se e punham-se a secar, geralmente sobre as vassouras que já estavam na loja à abrigada, pois no dia da matança podia amanhecer a chover. No dia seguinte, véspera da matança, as mulheres picavam e amassavam as cebolas, a salsa e os orégãos, outras coziam o bolo no forno, o pão de duas farinhas, cosiam-se os inhames, assavam-se batatas-doces, preparava-se o bacalhau para o almoço do dia seguinte, caso não se tivesse conseguido peixe fresco, outras preparavam as salgadeiras e panelas de barro para salgar o conduto e colocar a banha, etc. etc. No dia da matança, logo manhã cedo, começavam a chegar os primeiros convidados; os parentes e amigos mais chegados, que vinham ajudar a matar e preparar o porco.
Serviam-se os primeiros copinhos de aguardente. Alguns faziam umas caretas, outros talvez lamentassem o tamanho do copinho, e ainda outros picavam o tabaco da horta e embrulhavam o seu cigarro em papel próprio ou casca fina do milho. Deitava-se o olho ao porco ainda vivo no curral, teciam-se alguns comentários sobre a vida e progressão do bicho: Se tinha sido de boa boca, se tinha sido sempre saudável, discutia-se e até se apostava o peso do animal que depois de morto era pesado para tirar as teimas, etc. Quando eram de má boca, havia quem procurasse certas “pessoas entendidas na benzedura do quebranto”, que através de alguns cabelos do animal, normalmente do rabo ou do lombo, “ lá lhe resolviam o problema”. Mais um copo de aguardente e, ouvia-se uma voz mais alta: É rapazes! vamos a isto! Os mais afoitos saltavam primeiro a dentro do curral de corda na mão para amarrar, primeiro o focinho do porco para não morder, e depois os pés e as mãos para não espernear, o que poderia estorvar a manobra do enfiar a faca. Era colocado sobre um tabuleiro, normalmente dois tabuões lado a lado sustidos por duas travessas de madeira ou uma porta velha sobre dois cestos, e o matador (ou marchante) lá lhe enfiava uma comprida e aguçada faca rumo ao coração, o que nem sempre acontecia, e era o diabo depois para sangrar o bicho, e uma vergonha para ele marchante. Nos próximos dias não se falaria noutra coisa. O sangue era aparado para um alguidar normalmente de barro - na altura ainda não existiam os plásticos - enquanto outra pessoa já o ia mexendo para não coagular de imediato. Depois era logo misturado nas cebolas que voltavam a ser amassadas juntamente com um bom cesto de asa de salsa picada, bastantes orégãos e o véu do porco e o cravinho, picados em pequenos pedacinhos. Aberto o porco, eram-lhe retirados os chamados “miúdos” e levados num alguidar para a cozinha, onde se procedia à separação das tripas para desmanchar e lavar; as do intestino grosso e o paio, eram para as morcelas, e as do intestino delgado para a linguiça.
De seguida, depois de muito bem lavadas as tripas do bicho com água, farinha de milho, limas azedas, sal, etc., eram cheias e cozidas as morcelas. Enquanto isto, alguns iam acabando de amanhar o porco, outros bebiam mais um copinho de aguardente. Os bofes (pulmões) e o coração eram para guisar com batatinha branca e arroz, para a ceia das visitas que vinham à noite ver o porco, e também os que “ viriam cantar as morcelas “, juntamente com umas morcelas fritas,peixe do almoço, o fígado e uns valentes copos de vinho do pico. À noite, era hábito, alguns, ou próximos da família ou mais arrojados, formarem um ranchinho. Já escuro e de surpresa, quando menos se esperava, desatavam a cantar e tocar tambor e ferrinho fora da porta da cozinha:

Ó Sr. dono da casa
Está direito, não está torto
Nós tivemos a notícia
Que matastes o teu porco

As morcelas eram grossas
O toucinho recheado
Dai-nos uns copos de vinho
Também delas um bocado

Ó Sr. dono da casa
Porta aberta e luz acesa
E uma morcelinha assada
Para cima dessa mesa.

Ó Sr. Dono da casa
E mais toda a sua gente
Há-de-nos também brindar
C’ uma pinga de aguardente.

Ó Sr. Dona da casa
Trabalho mal amanhado
Aguardente não é boa
Sem um figuinho passado.

Ó Srs. donos da casa
Bem nos podeis desculpar
Sabe Deus daqui a um ano
Quem vos virá visitar.

As tripas do intestino delgado, eram para encher a linguiça, feita com a melhor carne, depois de colocada numa vinha’lhos forte, temperada de preferência com laranjas azedas durante 4 a 5 dias num ou dois alguidares de barro, mexida e provada, várias vezes ao dia. Depois de pendurado o porco - em São Caetano normalmente pelo focinho - a um tirante num lugar próprio, na cozinha ou na loja, era aberto de cima a baixo agora pelas costas, onde eram enfiadas umas canas que, mantendo a carne aberta, mais facilmente enxugava. Lavavam-se as mãos e toca a chegar para mesa, pois já não era sem tempo. Estava-mos em Janeiro. Frio a rachar, e, com aqueles copinhos de aguardente o molho de peixe e o feijão assado no forno a bom cheirar que faziam crescer água na boca, um bom pedaço de queijo de São João com uma fatia de pão de trigo ou de duas farinhas, aquele vinho de cheiro do Pico escolhido para o dia... Tinha valido a pena. Depois do valente almoço, alguns lá caminhavam para suas casas ou trabalhar as suas vinhas, se o tempo o permitia. Era vê-los por aquelas vinhas, altura em que eram trabalhadas, ora trabalhando, ora encostados a um abrigo, (uma parede) com um saco de serapilheira de capuz ou um casaco velho por cima das costas, enquanto chovia ou caía granizo. Os ventos fortes e mais frios, eram predominantes, do quadrante Oeste a Norte. Ali contra aquela parede mais alta sempre fazia mais uma abrigadinha. Outros continuavam por mais algum tempo na conversa, e, iam então as mulheres e crianças para a mesa, para um também bem merecido almoço.
Durante a tarde enquanto umas enchiam e cosiam as morcelas, outras ocupavam-se de certas limpezas, e outras ainda, preparavam já o jantar para todos inclusivamente os convidados que haviam chegar à noite, ver o porco. No dia seguinte, logo de manhã, desmanchava-se o bicho, partindo-o aos pedaços, como melhor convinha. Primeiro que tudo, cortava-se um bom pedaço de toucinho e uma assadura do lombo, para: O Padroeiro São Caetano, sr. Padre, sra. Professora e normalmente para o sr. Guarda-Fiscal lá da Freguesia, depois para os parentes, vizinhos e alguns amigos a quem se deviam favores e ou atenções. A carne, os ossos e algum toucinho, eram salgados em salgadeiras de barro, muito bem escaldadas com água a ferver, muito bem lavadas e esfregadas com laranjas azedas, que sempre já deixavam ali um certo gostinho. O restante toucinho, era derretido em grandes caldeirões, de onde se extraía a banha para temperar a panela e para a frigideira, e os resíduos, os saborosos torresmos da graxa, como se chamavam.
Da linguiça, vendia-se uma parte, bem como uma lata da banha, para comprar um outro porquinho para o ano seguinte. Disse atrás que, da mercearia vinha o petróleo para a iluminação, mas, sou do tempo em que na iluminação das casas, era usado o azeite de baleia.
O azeite era queimado numa candeia de folha-de-flandres que, no meu tempo era feita no latoeiro lá da freguesia, “mestre António Lá’faia”, algumas de boca aberta, com uma asinha para se pegar, e um bico por onde saía uma torcida de fiado de lã de ovelha por onde subia o azeite que ia sendo queimado. Outras tinham a sua tampinha.O fumo que fazia e o cheiro que espalhava pela casa… espantava também os ratos.